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segunda-feira, 19 de setembro de 2016

A queda de Cunha é o fim do parlamentarismo de negócios?, por Leonardo Avritzer.







Não estou entre aqueles que gostam de citar frases que se encaixam com determinadas situações políticas. Mas não resisto em citar a parte inicial da frase do Marco Antônio de Shakespeare em relação a Cunha: “o mal que os homens fazem sobrevive a eles”. A poucas pessoas na história recente do Brasil esta frase se aplica tão bem quanto a Eduardo Cunha. Ainda que a incidência da corrupção no Congresso Nacional não seja uma novidade e ainda que presidentes anteriores tenham renunciarado depois de revelações constrangedoras, como foi o caso de Ibsen Pinheiro e Severino Cavalcanti, a renúncia de Cunha não pode ser entendida como a dos outros dois. Nos dois casos anteriores, foi possível um processo de restauração e de recuperação da credibilidade da Câmara que será muito difícil neste momento. Explico porquê.
Cunha corrompeu o Câmara dos Deputados ao largo de um longo período de tempo de duas formas, uma conhecida e uma outra mais original. A forma conhecida foi patrocinar a eleição de um conjunto de parlamentares de diversos partidos para tentar constituir uma base política sua. Sabemos hoje, a acreditar na delação premiada de Sérgio Machado, que Aécio Neves realizou algo muito semelhante nas eleições 1998. Ele teria financiado a campanha de 50 parlamentares para garantir a sua eleição para a presidência da Câmara e parece não ter sido o primeiro a fazê-lo. A segunda forte distorção do papel do parlamento por Cunha foi mais original. Tratou-se, neste caso, de utilizar procedimentos do parlamento como requerimentos e outros pedidos de esclarecimento para constranger empresas e assim conseguir que elas contribuíssem para o seu caixa 2 que, como a Procuradoria Geral da República revelou, servia à diferentes propósitos. Cunha se tornou forte ou porque não dizer imbatível ao associar os dois procedimentos.
Cunha não era apenas o líder do PMDB na Câmara, cargo que ele exerceu em 2013-2014. Aliás, Cunha nunca foi um peemedebista puro sangue, como Renan Calheiros ou Temer. Ele passou por diversos partidos, entre eles o PRN e ao PPB e na medida em que se fortaleceu com o seu esquema de subornos e achaques às empresas, exerceu o papel de um líder suprapartidário das forças conservadoras no Congresso. Este bloco se organizou em duas grandes políticas: uma agenda moralmente conservadora e uma outra politicamente conservadora. A agenda moralmente conservadora implicou em organizar uma reação a uma política que foi forte nos últimos 14 anos de governos petistas: o fortalecimento de uma agenda para as mulheres, o fortalecimento da diversidade e de concepções diversas de família. No campo político, a agenda de Cunha significou defender os interesses dos grandes proprietários de terra, como vimos na votação do Código Florestal, no fortalecimento da saúde privada e da terceirização selvagem, entre outras políticas. Esse constitui o legado de Cunha que será muito difícil de desfazer.
Ninguém melhor do que o próprio Cunha para descrever o seu legado. Em sua carta de renúncia ele listou suas principais realizações: “No período de efetivo exercício do mandato, pude votar [as seguintes] pautas da sociedade e dos seus representantes. Reforma política, terceirização de mão de obra, redução da maioridade penal, "PEC da Bengala", Estatuto do Deficiente, pautas da segurança pública, correção do FGTS, foram alguns dos importantes temas votados na minha gestão. Mas, sem dúvida alguma, a autorização para a abertura do processo de impeachment de um governo que, além de ter praticado crime de responsabilidade, era inoperante e envolvido com práticas irregulares, foi o marco da minha gestão”. Ou seja, Cunha entende muito bem quais são os ganhos da sua gestão: a votação de uma pauta regressiva, na área de direitos humanos representada pela tentativa de redução da maioridade penal; uma pauta regressiva na área de direitos sociais, representada pela votação da proposta de terceirização; uma pauta regressiva na área de direitos políticos representada pelo distritão. Mas Cunha está correto: sua grande obra, que marcará o futuro institucional da democracia brasileira, foi propor o impeachment da presidente sem crime de responsabilidade, ao arrepio da legislação constitucional e infra-constitucional do país. Este ato marcará todas as presidências nas próximas décadas.
Enganam-se completamente aqueles que pensam que a Câmara dos Deputados vai ser restaurada política e moralmente com a saída de Eduardo Cunha. Pelo contrário, a marca de Cunha no parlamento brasileiro não vai ser apagada tão cedo, por dois motivos: em primeiro lugar, porque ele vai manter sua influência expressa de forma tão clara no apoio que conseguiu de parlamentares contra a sua cassação e no acordo que ele realizou para apresentar a sua renúncia que, aparentemente, envolveu o presidente interino, Michel Temer. Mas, a segunda herança de Cunha será mais duradoura. Cunha modificou o perfil do Congresso Nacional. Este se tornou a casa da representação de empresas via lobbies e de negociação de cargos no executivo. Podemos chamar o novo perfil do Congresso Nacional de “parlamentarismo de negócios”. O seu lado, auxiliar é uma forte ancoragem de valores morais conservadores. Essa será a herança mais forte de Cunha e a mais difícil de ser quebrada. Para que ela seja quebrada é necessário recompor o Congresso Nacional e, em especial, a Câmara dos Deputados em outras bases.
Eduardo Cunha expressa a falência moral das instituições políticas brasileiras.  A carta de Cunha com a realização do balanço de sua gestão mostra o principal problema da Câmara dos Deputados hoje, a distorção da representação através do financiamento empresarial. Não parece claro que as pautas que ele se orgulha de ter realizado sejam pautas da sociedade civil brasileira. Estas pautas foram possíveis porque Cunha foi o mestre do financiamento empresarial tanto legal quanto ilegal e influenciou a composição da Câmara através destes financiamentos.  Esta será sua herança de longo prazo. Em cima destes financiamentos, ele construiu um controle inédito sobre a Câmara que dificilmente chegará ao fim apenas com a sua renúncia. A recuperação de alguma dimensão política e moral da representação é o primeiro passo para a recuperação de uma política de esquerda no Brasil. Ela só poderá se reerguer se for resgatada a moralidade no processo de representação o que implica na derrota do “parlamentarismo de negócios”, o legado mais duradouro de Cunha.

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