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quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Dez anos da grande “biblioteca global da rebeldia”, por Silvia Arana.


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Tortura. Crimes de corporações transnacionais. Espionagem. Acordos de comércio secretos. Como o Wikileaks converteu-se na principal fonte de informação sobre o que o poder e a mídia querem ocultar
Por Silvia Arana | Tradução: Inês Castilho
O Wikileaks, definido por seu fundador Julian Assange como “uma grande biblioteca da rebeldia”, vem publicando há dez anos mais informação secreta que todos os outros meios de imprensa juntos. As revelações informaram o público sobre tratados secretos, vigilância maciça, ataques contra civis, torturas e assassinatos cometidos pelos governos dos EUA e de outros países. Dos dez milhões de documentos revelados pelo Wikileaks em uma década de existência, a organização escolheu ressaltar os seguintes[1]:
Documentos de Guantánamo (2007): o Wikileaks publicou os manuais e procedimentos secretos – inclusive tortura – usados pelo governo dos EUA contra os “combatentes inimigos” capturados no Afeganistão, Iraque e outro países.
Registros das guerras contra o Iraque e Afeganistão: contêm 500 mil documentos cruciais sobre essas guerras, inéditos, que incluem ataques contra civis e 15 mil assassinatos que não haviam sido revelados ao público.
Trafigura: A empresa petrolífera europeia despejou químicos tóxicos ilegais na Costa do Marfim, e levou o governo britânico a influir no silenciamento do The Guardian e da BBC. O Wikileaks publicou os documentos, rompendo a censura.
Assassinatos colaterais: Em 2010, o Wikileaks publicou o vídeo que mostra o ataque de helicópteros Apache estadunidenses em que morreram 12 civis iraquianos, incluindo dois empregados da agência Reuters, em Bagdá, em 12 de julho de 2007. O mundo pode ver as imagens impactantes de soldados norte-americanos festejando a morte de suas vítimas, entre elas os ocupantes de uma caminhonete que levava duas crianças para a escola, atacada quando tentava ajudar um dos feridos.[2]

Cablegate: No fim de 2010, Wikileaks expôs cerca de 250 mil telegramas diplomáticos implicando todos os países do mundo, expondo manobras, conspirações e outras ações ilegais em todos os continentes.
Três grandes tratados “comerciais”: O Wikileaks revelou negociatas secretas dos três maiores tratados de livre comércio, conhecidos por suas siglas em inglês: TTP, TTIP e TiSA. Os termos desses tratados haviam sido mantidos em segredo. O Wikileaks expôs que os tratados haviam sido concebidos para beneficiar grandes corporações multinacionais, que regulariam a economia mundial em detrimento da população dos países envolvidos.[3]
Arquivos de espionagem: O Wikileaks revelou o processo interno de empresas privadas de inteligência como a Stratfor, que fornece serviços para a CIA e outras agências do governo dos EUA, e empresas privadas como a Dow Chemical. A Dow Chemical contratou a Stratfor para ocultar sua responsabilidade no maior desastre químico do mundo, ocorrido em sua unidade de Bhopal, na Índia.
Documentos da Síria: O Wikileaks divulgou arquivos e inclusive emails do chefe de Estado Al-Assad, que revelam a natureza das elites e de que maneira as empresas ocidentais beneficiam-se das sanções econômicas impostas à Síria pelos EUA e a OTAN.
Série sobre a NSA: Revelou a espionagem realizada pelas agências de inteligência dos EUA contra chefes de governo e líderes de organizações internacionais, como Angela Merkel da Alemanha e o Secretário Geral da ONU, Ban Ki-Moon.
Emails do Comitê Nacional Democrático: Revelaram que o Comitê do partido Democrata conspirou contra Bernie Sanders para favorecer Hillary Clinton durante as primárias (campanha eleitoral interna para eleger o candidato presidencial). Debbie Wasserman Schultz, diretora do Comitê, teve de renunciar por causa das revelações.
Na comemoração do aniversário de 10 anos do Wikileaks, Melinda Taylor (da Corte Internacional de Direito Criminal), advogada de Julian Assange, referiu-se à perseguição ilegal contra ele. Recordou que os termos — perseguição ilegal — foram adotados pela comissão das ONU contra prisões arbitrárias, e que esta determinou à Suécia e à Grã Bretanha que cumprissem sua obrigação de proteger o criador do Wikileaks. Assinalou que, por trás das posições assumidas pela Suécia e pela Grã Bretanha havia “o grande braço dos EUA”. Disse: “Os EUA mantêm contra Assange e o Wikileaks uma perseguição contínua, escudados na segurança nacional. No marco da Lei da Espionagem, é a investigação de segurança nacional mais importante na história dos EUA. E é também o maior processo legal de segurança cibernética do exército dos EUA. Essa perseguição já gerou numerosos abusos e maus-tratos, como o de Chelsea Manning…”.
Acrescentou: “Assange foi e é um espinho no pé dos políticos norte-americanos, que querem ocultar dos eleitores seus erros e segredos sujos… A falta total de imparcialidade com relação a Julian Assange e ao Wikileaks foi enfatizada quando começou a recente campanha de calúnias contra os vazamentos de emails do Comitê Nacional do Partido Democrata. Mais uma vez ressuscitaram os esqueletos vermelhos escondidos debaixo da cama. Só porque o Wikileaks se atreveu a publicar informação como os atos ilícitos de Hillary Clinton em política externa, na Líbia, por exemplo. Por publicar isso, Assange é taxado de ‘antiamericano’, ou ‘inimigo do Estado’. Não é visto como editor, mas como um ‘combatente inimigo’.. foi incluído numa lista de foragidos da Agência Nacional de Segurança (NSA), ao lado de membros de organizações terroristas… E recentemente veio à tona que Hillary Clinton, numa reunião do Departamento de Estado, propôs eliminá-lo com um drone”
Ressaltou que a prisão indefinida de Assange não conseguiu silenciá-lo, nem ao Wikileaks. Disse que os detalhes de corrupção e excessos revelados pelo Cablegate (vazamento de telegramas diplomáticos) serviram como catalizadores da Primavera Árabe. Acrescentou que os emails e telegramas diplomáticos revelaram as maquinações políticas que precederam e acompanharam a invasão da Líbia realizada pela OTAN, em que Hillary Clinton teve um papel crucial. Detalhou: “A ex-secretária de Estado estava, como demonstra sua correspondência eletrônica, consciente de que existiam alternativas à guerra… mas sacrificou vidas para assegurar contratos às empresas petrolíferas”.
Ressaltou a importância que os vazamentos do Wikileaks tiveram em tribunais internacionais para defender as vítimas de abusos e estabelecer a verdade. Disse: “O acesso a evidências autênticas não está à disposição de todos… É muito fácil conseguir provas para os chefes de Estado e as grandes corporações, mas para os defensores de direitos humanos ou dissidentes é muito difícil. O Wikileaks nivelou o terreno do jogo, proporcionando informação aos que antes não a tinham… Os dez anos do Wikileaks transformaram a noção de democracia e direitos humanos.”
“Dar voz às vítimas das guerras dos EUA e seus aliados”
Por meio de videoconferência, Julian Assange afirmou que seu objetivo e o objetivo do Wikileaks é “a busca da verdade, a busca do conhecimento. Expor a verdade e dar voz às vítimas das guerras dos EUA e seus aliados no mundo têm sido as duas motivações fundamentais”. Acrescentou que em 2010, ao apresentar os documentos sobre as guerras do Iraque e do Afeganistão e expor pela primeira vez os crimes de guerra cometidos pelas forças armadas dos EUA, tornou conhecida “a verdadeira dimensão do sofrimento: a morte de civis, e o monte de mentiras fabricadas pelo Pentágono e pelo governo para ocultar o custo humano… Também foi desmascarada a falência da imprensa tradicional e seu servilismo diante dos propagandistas da guerra”.
Assange acrescentou que foi perseguido em consequência do seu trabalho pela transparência da informação, junto com o Wikileaks e alguns de seus denunciantes de consciência: “Estou há quatro anos na Embaixada do Equador em Londres… Chelsea Manning foi sentenciada a 35 anos de prisão por ter falado com a imprensa. Jeremy Hammond, outro denunciante, está preso nos EUA. Nesse país existe praticamente uma histeria macartista… Eu, junto com minha equipe e nossas fontes, cremos numa ideia algo romântica, que talvez não seja destes tempos, talvez pertença ao passado ou ao futuro; a noção de que entender o mundo pode levar as pessoas a fazer algo racional… Cremos que é fascinante entender o mundo que nos rodeia, e que isso pode conduzir à busca por justiça”.
Desenterrar a história que tem sido ocultada
Julian Assange distinguiu três tipos de narrativa. Primeiro, a história “subsidiada”, difundida para beneficiar interesses econômicos e construída sistematicamente, em nível mundial, usando todo tipo de publicidade e propaganda. Segundo, a narrativa “não subsidiada”, que perdeu o respaldo do poder econômico. Terceiro, a narrativa que foi suprimida de maneira deliberada. Disse: “Investi toda a minha vida adulta neste terceiro tipo de história; na história que foi suprimida, apagada para evitar que fosse conhecida. Esse tipo de história não existiria se não se fizesse um grande esforço para expô-la, como aconteceu, por exemplo, com a história das guerras do Iraque e Afeganistão… ao revelar os fatos escondidos foi possível reconstruir a história desses países, desses povos. Todos os documentos revelados pelo Wikileaks são um aporte para dar a conhecer a história que foi deliberadamente apagada. Ao recolher esses tipos de documento, construímos uma grande biblioteca da rebeldia…”
Uma grande biblioteca da rebeldia
O Wikileaks apresenta-se como um coletivo de historiadores do presente dedicados à construção de uma grande biblioteca. Os materiais dessa biblioteca expõem os abusos, negociatas e maquinações dos poderosos, que foram ocultados do público com a cumplicidade da imprensa. Apesar do grande aparato de perseguição montado para calar o Wikileaks – a tortura e prisão de Manning, a caçada internacional contra Edward Snowden, a perseguição contra Assange – dia após dia numerosos denunciantes anônimos emergem “das entranhas do monstro” [4]. Fornecem evidências sobre as chacinas de civis cometidas pelo exército dos EUA no Oriente Médio; a vigilância maciça do aparato de segurança nacional dos EUA contra sua própria população; os tratados internacionais de “livre comércio”; a hipocrisia dos políticos que publicamente prometem defender os interesses do povo e em particular submetem-se aos interesses de banqueiros e corporações. Cada uma destas revelações é um aporte na evolução de um movimento por justiça, verdade e direitos humanos.
Dizia Carl Sagan, a propósito das bibliotecas: “… somos a única espécie do planeta que inventou uma memória coletiva que não está armazenada nem em nossos genes, nem em nosso cérebro. O depósito dessa memória chama-se biblioteca… a saúde de nossa civilização, o nível de consciência sobre os alicerces da nossa cultura e nossa preocupação com o futuro podem ser medidos em relação ao apoio que damos a nossas bibliotecas”.

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