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quarta-feira, 8 de março de 2017

Psicanálise para a obediência e o conformismo?, por Luiz Eduardo de Vasconcelos Moreira.

170223-Freud
“Provocar oposição e despertar rancor é o destino inevitável da psicanálise”, dizia Freud em 1914. Todavia, o lugar cultural destinado à psicanálise, em meados do século XX, estava longe daquele imaginado por seu criador
O que um episódio bizarro – a presença de um analista numa equipe de torturadores – ensina sobre os descaminhos da criação transgressora de Freud, quando controlada por instituições oligárquicas
Por Luiz Eduardo de Vasconcelos Moreira, Lucas Charafeddine Bulamah e Daniel Kupermann

Título original do artigo: “Entre barões e porões: Amílcar Lobo e a psicanálise no Rio de Janeiro durante a ditadura militar”*
Em 2014 contam-se duas efemérides: os 100 anos da Psicanálise no Brasil, considerados desde a exposição de Juliano Moreira na Sociedade Brasileira de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal, e os 50 anos de um golpe de estado que resultou numa ditadura (governada pelos militares, mas com participação e sustentação civis) no Brasil. Do entrecruzamento desses dois acontecimentos resulta um terceiro: a presença de um psicanalista em formação na Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ)1, nos porões da ditadura militar brasileira: o chamado caso Amílcar Lobo.
A instalação da Comissão Nacional da Verdade (tendo em sua composição uma psicanalista), em 16 de maio de 2012, “a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional” (Brasil, 2011), deu ensejo ao surgimento de várias outras comissões da verdade, seja no plano estadual, municipal ou institucional. Em um depoimento prestado ao jornal Folha de São Paulo no dia 16 de junho de 20132, Maria Helena Gomes de Souza, viúva de Amílcar Lobo, reiterando que seu marido não foi torturador, afirma: “A Comissão da Verdade vai ter que me ouvir. Amílcar foi conivente com a tortura? Foi” (grifos nossos). Baseados nesse hiato entre ser torturador e ser conivente com a tortura, ter participado voluntaria ou involuntariamente, mas com certeza testemunhado os porões da ditadura e falado sobre isso, que os testemunhos de sua viúva e sua filha buscam perdoá-lo.
No dia 2 de outubro de 2013, Maria Helena comparece à Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro, obedecendo ao (último) desejo do marido de pedir perdão:
Meu marido nunca participou da tortura, mas não vim aqui para inocentá-lo. O erro dele foi a omissão. Havia uma sensação de impunidade e os militares achavam que estavam fazendo o melhor para o Brasil, que estariam salvando o país, mesmo que, para isso, estivessem torturando pessoas, o que acho um absurdo.3
E depois: “Eu não o inocento. Ele teve sua participação involuntária, mas teve”.4 Essas falas retomam, por exemplo, a carta enviada por ela à revista Época, publicada no dia 24 de junho de 2010:
Amílcar Lobo nunca confessou ter participado de uma sessão de tortura ou ter dado orientação sobre isso. Não há registro desse fato em lugar nenhum. Em detrimento da verdade, Época comete uma grave injustiça com o único brasileiro que se dispôs a reconhecer sua culpa, a prejudicar sua vida profissional, afetiva e financeira (…)5.
Nesta mesma revista, em texto publicado seis meses depois6, ela afirma:
(…) Amílcar Lobo era médico convocado para prestar serviços à nação. Não podia deixar de fazê-lo sob pena de prisão. (…) Prevaleceu, como verdade absoluta, o que diziam os presos políticos. O psicanalista, mais que qualquer outro profissional, sabe que o torturado tem o psiquismo abalado de tal forma que não consegue ser isento. As instituições falharam em não buscar a verdade. Foram tendenciosas ao privilegiar o depoimento dos ex-presos políticos. (…) É fantasioso achar que Amílcar Lobo examinava os torturados para informar aos agentes da repressão se os presos poderiam continuar a ser agredidos.
Em depoimento recente à Revista Brasileiros7, Alessandra, a filha de Lobo, testemunhando pela primeira vez a respeito do caso, diz:
Meu pai atendeu presos políticos, mas por trás da participação dele tinha um ser humano. Ele era um médico. Não torturava. E eu não era nem viva quando a ditadura aconteceu. Por que tenho de carregar essa culpa? Essa culpa não é realmente minha.
Por outro lado, reafirma: “Meu pai não foi torturador. Não acredito que ele examinava uma pessoa para dizer se ela aguentava mais sessões de tortura. Como médico, ele tinha de prestar socorro. Se aquela pessoa seria mais torturada ao melhorar, é uma questão dos militares” (não esqueçamos que Lobo servia como oficial do exército). Reiterando a fala de sua mãe em inúmeras ocasiões, Alessandra conclui, pretendendo uma prova da boa vontade de Lobo: “Ele também foi o único que deu informações sobre Rubens Paiva. Meu pai contou o que viu lá dentro”.
O caso Amílcar Lobo se desdobra, assim, entre seu atestado de culpa e a alegação de inocência, entre a obediência ao dever e o dever moral de contar o que viu, entre seu papel como médico na tortura e sua condição de testemunha dos fatos. Ao mesmo tempo, continuava sua formação como psicanalista na Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ).
Lobos, Carneiros e Leões
Macedo (2011) descreve a seguinte cena: no dia 24 de setembro de 1980, Hélio Pellegrino, psicanalista da SPRJ, coordenava uma mesa intitulada “Psicanálise e Fascismo”, parte de um simpósio sobre Psicanálise e Política, quando foi interpelado por um jovem:
Hélio, o que você faria se soubesse que um de seus colegas psicanalistas é médico de um centro militar de torturas?”. “Faria tudo o que estivesse em meu alcance para que ele seja punido”. “Então informo a você que ele estava em minhas sessões de tortura, bem como nas de meus amigos”. “Você acaba de fazer publicamente uma denúncia de extrema gravidade.” “E você fez uma declaração que me enche de esperança”. “Eu a mantenho”. Começava o caso Lobo (Op. cit., p. 85).
Apesar de os textos apresentados neste simpósio terem sido coligidos em livro (Clínica Social de Psicanálise, 1981), as discussões que tenham eventualmente se seguido às mesas não foram transcritas nem publicadas. Não foi este o começo do “caso Lobo”, que já havia sido objeto de denúncias para os organismos burocráticos da comunidade psicanalítica filiada à IPA; tampouco foi seu fim, tendo, na verdade, sido o estopim para que se tornasse público. Dele resulta um conjunto de publicações que compõem a trama do próprio caso (cf. Coimbra, 1995; Kupermann 1996, 2014; Lobo, 1989; Roudinesco e Plon, 1998; Vianna, 1994, 1997, 1998), disponibilizando inclusive grande número de correspondências trocadas por seus atores.
Graças a esse conjunto sabemos, por exemplo, que o jovem se chamava Rômulo Noronha de Albuquerque – um preso político que reconhecera na equipe de torturadores o Dr. Amílcar Lobo Moreira da Silva – e que já em 1982 a comunidade psicanalítica sabia (ou poderia saber) da denúncia envolvendo as atividades de Lobo (ver carta de Pellegrino reproduzida em Cerqueira Filho, 1982, p. 213).
Esta denúncia tomou a forma da reprodução de um recorte da edição de número 102 do diário clandestino brasileiro Voz Operária, de agosto de 1973, que dizia que
(…) Outro oficial do Exército, da equipe de torturadores, é o tenente médico Amílcar Lobo Moreira, Esse (sic) oficial orienta os torturadores sobre a resistência física do preso político. E como psicanalista é o responsável pelo ‘acompanhamento’ da saúde mental do torturado e da melhor maneira de arrancar confissões” (Langer e Bauleo, 1973, p. 93).
Os autores acrescentam: “Uma nota ao pé da página, escrita a mão, diz o seguinte: ‘Amílcar Lobo Moreira é candidato da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro”, para em seguida fazer a primeira aproximação do caso do psicanalista torturador com a situação da Psicanálise na Alemanha do período nazista e a “política de salvamento” – da instituição, bem entendido – promovida por Ernst Jones8.
Marie Langer, psicanalista argentina nascida em Viena e emigrada diante da ascensão do nazismo, fez o recorte de jornal circular ao encaminhar a denúncia ao presidente da IPA – à época, Serge Lebovici –, que indagou aos responsáveis pelas sociedades psicanalíticas do Rio de Janeiro filiadas à IPA9 sobre a veracidade do caso, recebendo como resposta um desmentido tanto de Leão Cabernite, analista didata membro da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ) e indicado como analista de Lobo no recorte do Voz Operária, quanto de David Zimerman, membro da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre e então presidente da COPAL, órgão que reunia as sociedades psicanalíticas da América Latina filiadas à IPA (Roudinesco e Plon, 1998, p. 90).
Uma investigação grafológica comparando as notas manuscritas do recorte de jornal com as fichas de inscrição do III Congresso Brasileiro de Psicanálise chegou, em 1974, à conclusão de que as notas eram da psicanalista Helena Besserman Vianna, da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ). Enquanto Lobo recebeu uma declaração10 assinada pelo General Sylvio Frota, comandante do I Exército, atestando seus “procedimentos dignos e humanos” e desfazendo “intrigas e aleivosias”, Vianna sofreria retaliações institucionais: já em março de 1975, mesmo cumprindo todos os requisitos para se tornar membro titular da SBPRJ, teve por escrito seu pedido negado com base no artigo 13 dos estatutos, que pede que os candidatos sejam julgados pelo Conselho com base em seu “caráter” e “normas éticas e técnicas”.
O Conselho pedia sigilo sobre o assunto e apenas após longa troca de cartas nos meses seguintes concede a Vianna uma reunião em 24 de junho de 1975, em que lhe relataria os motivos da rejeição de seu pedido: suposto plágio nos trabalhos apresentados, a acusação de ter sido ela a responsável pela denúncia contra Lobo e o fato de ter sido fichada no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) desviando-se, portanto, da “neutralidade” exigida pela instituição (Vianna, 1994, p. 59). Em julho de 1975, Vianna vai ao Congresso Internacional de Psicanálise, em Londres, e apresenta as cartas trocadas ao presidente da IPA, Lebovici, que parece não reconhecer o caso, e a Daniel Wildlöcher11, então vice-presidente da IPA. Com a afirmação, pelo Conselho Executivo da IPA, de que o candidato que fora denunciado não mais participava da SPRJ, junto a uma oferta de “panos quentes”, exigindo a incineração das cartas trocadas (o que não cumpriu), Vianna torna-se titular no final de 1976, com o mesmo trabalho apresentado anteriormente.
Ao mesmo tempo, Lobo havia se retirado voluntariamente, enquanto sua situação era julgada pela SPRJ. Sem nenhuma decisão por parte da instituição, Lobo volta ao Instituto de Psicanálise da SPRJ em 1976, dois anos depois de ter saído do exército, para continuar sua formação de psicanalista. Sem nenhuma condenação formal e, portanto, sem nenhuma penalidade para cumprir, seu caminho não se mostrou fácil: nenhum analista didata aceitou tomá-lo em análise, ou seja, sua formação não avança.
O caso Lobo ganha nova projeção quando, no final de 1979 e início de 1980, uma nova crise institucional eclode da SBPRJ envolvendo a questão do currículo de formação de analistas, a aceitação de membros não-médicos como candidatos à formação analítica e a hierarquia institucional. O estopim é, mais uma vez, uma carta, desta vez de Manoel T. Moreira Lyra, enviada a todos os membros da SBPRJ, mencionando a reunião sigilosa do Conselho da SBPRJ na qual se deliberou sobre as denúncias envolvendo Lobo. A situação recrudesce a tal ponto que no dia 15 de setembro de 1980 convoca-se uma assembleia para debater a situação de crise, o que resulta numa assembleia permanente dita “de crise” (Vianna, 1994, pp. 84-85).
A crise aumenta ainda mais e alcança a vizinha SPRJ, da qual, lembremos, participa Lobo, bem como Hélio Pellegrino, Eduardo Mascarenhas e Wilson Chebabi. Uma reportagem do Jornal do Brasil, intitulada “Os barões da Psicanálise”12, torna a crise conhecida do grande público. Pellegrino, Mascarenhas e Chebabi denunciam “os altos custos do tratamento, a gerontocracia das instituições psicanalíticas, as discriminações ideológicas contra candidatos à formação, o falso ‘apolitismo’, e até mesmo a ignorância das obras de Freud”. No dia seguinte, Rômulo Noronha de Albuquerque faz a denúncia, também pública, da atuação de Amílcar Lobo como torturador. Estava dado, assim, o entrelaçamento das denúncias contra Lobo e a crise dos barões da psicanálise.
Como prometido, Pellegrino levou adiante a denúncia em carta já citada, endereçada à presidência da SPRJ (cf. Cerqueira Filho, 1982, p. 213). No dia 10 de outubro de 1980, a carta informando a Lobo sua exclusão do Instituto de Ensino da Psicanálise da SPRJ encerrando, na prática, qualquer possibilidade de concluir sua formação, é enviada a todos os membros da instituição. No dia 8 de outubro, Pellegrino e Mascarenhas são expulsos da SPRJ por conta das críticas publicadas na imprensa. Sua expulsão levou a protestos dos membros da própria SPRJ e foi revertida em reunião do dia 21 de outubro, por conta de uma suposta retratação dos expulsos encaminhada aos membros por meio de uma circular em 1 de dezembro. Esta retratação, por sua vez, é repudiada por Pellegrino e Mascarenhas em carta de 14 de janeiro de 1981, o que leva a SPRJ a confirmar sua expulsão em 27 de janeiro. A primeira carta de apoio aos dois é enviada à direção da SPRJ em 1 de fevereiro.
No dia 5 de fevereiro de 1981, a militante e presa política Inês Etienne Romeu, única sobrevivente da “Casa da Morte”, centro clandestino de tortura e assassinatos em Petrópolis, reconhece seu torturador em seu próprio consultório: Amílcar Lobo que, sinistra ironia, adotava o codinome de “Dr. Carneiro” junto à equipe de tortura. Acrescido da expulsão de Pellegrino e Mascarenhas e da crise na SPRJ, este fato ganha a capa da edição da revista Veja de 11 de fevereiro de 1981. O reencontro entre Inês e Lobo é publicado também na revista Istoé desta mesma semana, junto com “A casa do horrores”, na qual se reporta a existência da “Casa da Morte”13. A notícia de que uma presa política torturada havia reconhecido seu torturador já circulara na semana anterior, e os jornais impressos já publicavam reportagens.
No dia 12 de fevereiro de 1981, nova circular sobre Amílcar Lobo é enviada aos membros da SPRJ:
diante da repercussão havida com a publicação de notícias em diversos órgãos da imprensa sobre o Dr. Amílcar Lobo Moreira da Silva, envolvendo a SPRJ, sinto-me [Victor Manoel Andrade, presidente da SPRJ] no indeclinável dever de (…) dirigir-me a todo o quadro social e aos candidatos do IEP para prestar os esclarecimentos que a situação requer.
Além disso, fica claro o motivo da expulsão do candidato: contrariamente aos estatutos, sua formação esteve interrompida por mais de seis anos (Cerqueira Filho,1982, p. 215)14.
Em virtude de ter assinado a primeira carta de apoio a Pellegrino e Mascarenhas, Ernesto La Porta é convocado a uma reunião com a Diretoria e o Órgão da Disciplina dos Títulos em que deveria negar ou afirmar suas posições (cf. Cerqueira Filho, 1982, p. 206) – tornadas públicas por conta da reprodução da carta na edição de 1 de janeiro de 1981 do Jornal do Brasil – bem como sua declaração à revista Veja (op. cit.) de que as investigações sobre o caso Lobo esbarraram em Leão Cabernite. A intransigência da direção da SPRJ em punir Pellegrino, Mascarenhas e os signatários da carta de apoio a eles leva à divulgação de uma carta de repúdio à direção da SPRJ, subscrita por 32 assinaturas. Esta carta daria origem ao chamado “Fórum de Debates” (Barreto, 1982), que “passa a ser lugar dos mais importantes na luta de oposição no âmbito das sociedades psicanalíticas” (Vianna, 1994, p. 97).
Ainda em 1981, a Ordem dos Advogados do Brasil encaminha um ofício com depoimentos de presos torturados por Amílcar Lobo, que são traduzidos e encaminhados para a IPA, sem suscitar resposta. Vianna entrega pessoalmente a Lebovici, então presidente da IPA, um conjunto de provas e documentos sobre o caso Lobo mostrando que sua denúncia original não era, portanto, caluniosa, e pedindo a revisão das declarações da IPA, sem sucesso. No entanto, uma comissão de sindicância – enviada à SPRJ em outubro de 1981 – propôs inúmeras modificações na hierarquia da instituição e solicitou alterações no processo de escolha de analistas didatas. Por outro lado, a comissão reafirmou que “não haverá reconhecimento de qualquer grupo que assuma a prerrogativa de organizar reuniões independentemente da Sociedade. O Conselho tem em mente o Fórum de Debates (…)” (carta reproduzida em Cerqueira Filho, 1982, p. 241).
Cinco anos depois destes acontecimentos, em 1986, Lobo dá uma entrevista à revista Veja de 3 de setembro em que afirma:
Eu não sei precisar o dia, mas foi no início de 1971. (…) Fui chamado às 2 da manhã para ir ao quartel, onde deveria atender um preso. (…) Eu nunca havia presenciado um quadro desse tipo. Aquele homem levara uma surra como eu nunca vira. Fiquei na cela com ele durante uns 15 minutos. Durante todo o tempo ele esteve deitado. Estava consciente. Não gemia. Disse só duas palavras: – Rubens Paiva. (…) No dia seguinte, ou melhor, no mesmo dia, quando cheguei ao quartel [para o turno regular] um oficial me falou: – Olha, aquele cara morreu.
Pela primeira vez havia uma testemunha que afirmava o que sempre se suspeitou: Rubens Paiva morrera por conta da tortura que sofrera. O caso Lobo voltava, mais uma vez, à tona.
No dia 14 de setembro de 1986, o Jornal do Brasil dá uma chamada de capa para uma entrevista15 exclusiva com Lobo, em que ele retoma o testemunho sobre a morte de Rubens Paiva, bem como sobre o período em que esteve em formação psicanalítica na SPRJ e sua relação com Cabernite. Dois dias depois, Cabernite se defende em texto publicado no mesmo jornal16 reafirmando que não havia provas, quando da denúncia de Helena Besserman Vianna, que condenassem Amílcar Lobo. Helena Vianna se manifesta em texto publicado também no Jornal do Brasil no dia 26 de outubro exigindo que explicassem “(…) em nome de que ética, de que psicanálise, de que princípio institucional acobertaram e acolheram médico, psicanalista em formação, que prestava atendimento a presos políticos torturados, como membro de equipe de tortura. Ou que reconheçam de público seus erros (…)” (Vianna, 1994, pp. 110-111). Diante de mais essa rodada de reportagens na imprensa, Vianna volta a cobrar uma resposta da IPA e uma retratação da SPRJ. A resposta institucional vem na forma de uma nota oficial publicada na grande imprensa na qual declara reconhecer seus equívocos e assumir sua responsabilidade, dando o caso por encerrado (Vianna, 1994, p. 127).
Em 1988, o Conselho Estadual de Medicina do Rio de Janeiro (CREMERJ) decidiu revogar o direito de Lobo de exercer a profissão, decisão esta que é seguida pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), um ano depois. Em 1992, Leão Cabernite, por sua vez, é julgado culpado pelo CREMERJ; o CFM, porém, decide por uma suspensão de 30 dias e não por revogar seus direitos profissionais. A IPA, no entanto, o expulsa dos seus quadros.
Em 1994, Helena Vianna publica Não conte a ninguém…, em que apresenta a cronologia do caso Lobo e oferece uma interpretação, baseada na concepção psicanalítica da transmissão psíquica transgeracional, para este triste capítulo da história da psicanálise no Brasil. Vianna retraça a origem da implantação da Psicanálise no Rio de Janeiro até a vinda, da Europa do pós-guerra, de dois analistas didatas para a formação de psicanalistas. Um deles, Wener Kemper, participara do Instituto Göring, o organismo da Alemanha nazista responsável por coordenar as psicoterapias no III Reich e, no que concerne à Psicanálise, por extingui-la como “ciência judia”, ainda que se houvesse tentado uma “política de salvação” baseada no suposto caráter apolítico da psicanálise (cf. Katz, 1982, p. 260). Ora, toda a reação da SPRJ às denúncias de Vianna foi baseada nesse mesmo suposto caráter apolítico da Psicanálise: a SPRJ, sendo uma sociedade científica, não deveria lidar com problemas políticos que, por serem políticos, ser-lhe-iam externos. Dessa maneira foi possível que Kemper, que fora colaborador do regime nazista, fosse o analista de Leão Cabernite – de origem judaica – que, por sua vez, analisou Lobo, participante de uma equipe de tortura durante os anos de chumbo no Brasil. Esta mesma linha de análise – a crise da Psicanálise como fruto da afirmação das sociedades psicanalíticas de seu caráter apolítico – é seguida por Coimbra (1995) em sua leitura do caso Lobo, ainda que embasada em outro referencial teórico.
Por fim, o livro de Vianna é traduzido para o francês, em versão ampliada (Vianna, 1997): abarca agora, também, a criação do Grupo Pró-Ética, constituído como reação à decisão da assembleia geral da SPRJ de recusar as conclusões do comitê de ética sobre o caso Amilcar Lobo, que reconhecia Leão Cabernite como responsável e culpado de graves falhas éticas. A IPA, ao mesmo tempo em que confirma a legalidade do procedimento administrativo de recusa ao relatório do comitê de ética, garante que o Grupo Pró-Ética, caso decidisse pela fundação de uma nova instituição, teria todo seu apoio e reconhecimento. Além disso, Vianna apresenta também a carta de Wildlöcher, as cartas e um memorando de Lebovici no qual este se defende e reafirma a correção de suas decisões tomadas como presidente da IPA, mesmo com os apelos de Horacio Etchegoyen, psicanalista argentino e o primeiro presidente latino-americano da IPA, para que reconhecesse seus erros. Um prefácio de Etchegoyen é publicado na tradução para o espanhol do livro de Vianna, publicado na argentina (Vianna, 1998), no qual repassa e torna públicos os erros da IPA.
Amílicar Lobo publica suas memórias, A hora do lobo, a hora do carneiro, em 1989, apresentando-se, na avaliação de Helena Vianna (1994, p. 129), como vítima, nada envergonhado; na verdade, como nos faz crer o prefácio assinado pelo então célebre pastor Jonas Rezende, disposto a começar de novo (Lobo, 1989, p. 12).
Um de nós, em dissertação de mestrado defendida em 1992, publicada na forma de livro (Kupermann, 1996; 2014), destacou quatro aspectos das memórias de Lobo que nos servirão como guia de leitura para à elucidação das implicações do processo de institucionalização da psicanálise na produção do que, desde então, ficou conhecido como o “caso Amílcar Lobo”. São eles: a identidade entre as práticas do Exército e as da SPRJ; a negação institucional, por parte da SPRJ, de palavras ou pensamentos distintos do que Lobo vivia no DOI-CODI; a identificação de Lobo, na posição de candidato em formação psicanalítica, com os torturados que atendia nos porões da ditadura; a introjeção das regras e ideais das instituições psicanalíticas (Kupermann, 1996, p. 188)17.
Sim, Amílcar Lobo, um membro ativo do corpo de torturadores da ditadura militar brasileira era, portanto, médico e ansiava também tornar-se psicanalista, optando pela formação em psicanálise oferecida pela SPRJ, uma das duas instituições filiadas à IPA no Rio de Janeiro. A questão que, no entanto, insiste em perturbar as tentativas já ensaiadas para o entendimento desse episódio é: a relação entre Lobo, um médico torturador, e Lobo, um psicanalista em formação, é de mera casualidade? Ou poder-se-ia dizer que o campo psicanalítico estava, com efeito, implicado nas práticas mais sinistras do estado de exceção?
A “produção de obediência” no movimento psicanalítico
A formação de novos analistas e o sistema erigido pela IPA para que isso fosse possível internacionalmente é o ponto chave para se compreender os impasses da transmissão do saber e da prática psicanalítica. Freud atinha-se à ilusão de que se desenvolvendo internamente de acordo com seu próprio ritmo e vencendo a hipocrisia e as resistências advindas da cultura, a psicanálise se afirmaria naturalmente. Todavia, os regulamentos e as proibições impostos pela IPA para a padronização da formação psicanalítica não apenas afetaram severamente o desenvolvimento interno da psicanálise, como efetivamente promoveram desvios e, mesmo, distorções no curso do processo de institucionalização da psicanálise.
Os regulamentos e as proibições institucionais incidiram sobre um ponto nodal da formação psicanalítica, a análise do analista, batizada de análise didática por vincular ensino e experiência do inconsciente. A ideia de que o candidato deve ter experimentado os efeitos da análise em si próprio para poder atuar como analista sugere, ainda que de maneira implícita, que a transferência é o regulador da transmissão do saber psicanalítico, estando portanto na base da institucionalização da própria psicanálise (cf. Kupermann, 2014).
As relações entre a psicanálise institucionalizada e o poder dominante no Brasil dos “anos de chumbo” indicam, inequivocamente, o fato de que a psicanálise é indissociável do meio cultural no qual se insere institucionalmente. Em sua origem, a psicanálise idealizada por Freud pretendia estabelecer-se como um saber crítico sobre a cultura, apresentando propósitos reformistas e transformadores dos estilos de vida nela exercidos. Portanto, haveria uma tensão original entre o saber e prática psicanalítica e a cultura vigente. Os destinos que esta tensão adotou ao longo da história da institucionalização da psicanálise são o ponto central da nossa investigação.
Provocar oposição e despertar rancor é o destino inevitável da psicanálise”, dizia Freud em 1914 (1914/1980, p. 17), situando a psicanálise em uma posição de potência transgressora. O inconsciente, a sexualidade infantil, o recalque e, finalmente, o descentramento da razão, pretendiam revelar a incômoda verdade sobre o ser humano, desmascarando a “hipocrisia cultural”; portanto, desde o início da aventura freudiana não se esperaria menos que uma enorme resistência da cultura ao confrontar-se com a psicanálise.
Todavia, o lugar cultural destinado à psicanálise, já pouco antes da morte de Freud e especialmente em meados do século XX, estava longe daquele imaginado por seu criador. Tornando-se socialmente aceita e, mesmo, prestigiosa, e tendo seu saber e sua prática terapêutica reconhecida, a “peste” (como fora apelidada) passara a ser “respeitável e normal”, tanto na América do Norte como nos grandes centros da Europa (Gitelson, 1954, p. 178). Ou seja, a história revela que não apenas a psicanálise não é uma prática intrinsecamente transgressora ou “revolucionária” – como demonstrou Castel (1978) em crítica ao “psicanalismo”, referindo-se ao contexto psicanalítico francês do final do século XX – como, inclusive, pode ser usada como instrumento de adaptação, conformismo social e manutenção do dos poderes instituídos18.
A análise didática, regulamentada e institucionalizada, teve origem em uma ideia de Sándor Ferenczi. Reagindo ao trauma sofrido pela comunidade psicanalítica com ruptura de Jung – que chegara a presidente da IPA -, em 1912, Ferenczi imaginou que se os colaboradores mais próximos de Freud fossem analisados pessoalmente pelo mestre, poderiam “representar a teoria pura, não adulterada por complexos pessoais” (Grosskurth, 1991, p. 46). Em seguida, estes mesmos discípulos analisariam outros aspirantes a psicanalistas em diferentes centros da Europa – o que logo em seguida ocorreria também nos Estados Unidos e em outros continentes – evitando novas dissensões e novos acidentes na transmissão da psicanálise. Esta proposição revela, assim, in status nascendi e a um só tempo, o paradigma da formação psicanalítica e a origem de seu próprio malogro; paradigma, conforme vimos, representado pela análise didática. Com o intuito de se evitar “adulterações teóricas”, descobria-se o poder da manipulação da transferência não apenas para a transmissão da experiência do inconsciente, mas também para o bom funcionamento institucional – bom comportamento teórico dos iniciantes e manutenção do status quo e dos poderes institucionais.
Com efeito, a transferência necessária a toda análise se tornava um instrumento alienante para a doutrinação teórica e política, cujos efeitos se farão sentir desde muito cedo na história da psicanálise. Paralelamente, começavam a ser notadas mudanças no perfil dos candidatos que se inscreviam à formação nos institutos, que aparentavam ser bem-adaptados, levemente neuróticos, realistas e… demasiado normais! A esse respeito, é exemplar o testemunho de Anna Freud:
Quando examinamos as personalidades daqueles que por auto-seleção constituíram a primeira geração de analistas, suas características deixam pouca dúvida. Eram não-conformistas, questionadores, do tipo que não se satisfazia com os limites impostos ao conhecimento. Entre eles, encontravam-se sonhadores e outros que conheciam o sofrimento neurótico por tê-lo vivido. Esse tipo de recrutamento transformou-se radicalmente desde que a formação psicanalítica foi institucionalizada e, em contornos mais estritos, faz apelo a um tipo diferente de personalidade. Além do mais, a auto-seleção deu lugar a um minucioso exame dos candidatos. Donde a exclusão daqueles que são suspeitos de alterações mentais, dos excêntricos, dos autodidatas, dos grandes imaginativos; em vantagem daqueles que, bem acomodados e bem preparados, são trabalhadores o suficiente para ambicionar maior eficácia profissional (Freud, 1968, p. 200).
A emergência doa chamados “normal candidates” era, a princípio, diagnosticada – pela grande maioria daqueles que se propunham a pensar a questão em meados do século passado – como efeito da intromissão de fatores externos ao campo psicanalítico; quando muito, reflexos de uma transformação cultural mais ampla. Maxwell Gitelson, psicanalista didata norte-americano, foi o que mais se aproximou da percepção de que o processo de institucionalização da psicanálise era responsável por essa mudança no perfil “psicopatológico” dos candidatos à formação. Gitelson (1954) creditava a emergência de candidatos “normais” ao fato de estarem culturalmente impregnados de uma atmosfera psicanalítica: a psicanálise havia se tornado uma nova figura da autoridade no campo social, o que causaria uma camada adicional de resistências egossintônicas veiculadas por leituras, aulas ou análises “selvagens” praticadas por colegas ou professores, possivelmente conduzindo a uma “fachada de pseudonormalidade”. O campo psicanalítico, na análise de Gitelson (ibid., p. 178), havia se tornado ele próprio “uma das imagos inconscientes de autoridade”, ou, em termos psicanalíticos, uma instância superegóica.
Por seu turno, a leitura genealógica de Michael Balint (1948) irá apontar uma função superegóica no próprio dispositivo da análise didática e, de quebra, implicar a história do movimento psicanalítico na produção daquilo que outros psicanalistas contentavam-se em diagnosticar de um ponto de vista distanciado e asséptico. O ponto de partida de Balint (1948) era a percepção de uma tendência de os candidatos serem “excessivamente respeitosos” e “obedientes” com seus analistas didatas – sintomas de uma formação superegóica que obrigava os candidatos a incorporarem maciçamente os ideais e as interpretações de seus analistas sem questionamento. Nesse sentido, mesmo que um candidato com um perfil excêntrico – como aqueles da primeira geração descritos por Anna Freud – fosse selecionado para a formação, seria submetido a uma “intropressão de um superego” (op. cit., p. 167) – verdadeira lavagem do inconsciente – que o deixaria frente a duas alternativas ingratas: abandonar a formação, ou tornar-se, por fim, conformado e obediente.
Balint detectava também uma extrema aridez nas discussões acerca da formação psicanalítica no interior da Associação Psicanalítica Internacional. O dogmatismo se revelava na total ausência de reflexão e de senso crítico que, habitualmente, caracteriza o exercício da psicanálise, servindo à proibição do pensamento, ao recalque, e à reprodução do modelo que seria forçosamente incorporado nos aspirantes à psicanálise – através do veículo da identificação com o analista didata. As expensas, decerto, da afirmação criativa da singularidade, estando os candidatos mais questionadores sob constante ameaça de expulsão. É, portanto, através de uma formação psicanalítica superegoica, na qual a manipulação da transferência tem como efeito maior uma produção de obediência, que as formas instituídas de poder na psicanálise asseguraram seu conforto.
Psicanálise e ditadura
Como vimos, aos candidatos à formação psicanalítica em análise didática era imposta uma fórmula transferencial totalitária muito semelhante àquela veiculada pelo Estado brasileiro durante o regime militar: “ame-o ou deixe-o”. Se aos cidadãos “subversivos” restava a segunda proposição da fórmula, deixar o país (no melhor dos casos) ou deixar de viver, sobre os candidatos menos conformados pairava a ameaça de abandono da formação psicanalítica, uma vez que a única oportunidade de formação, na época, resumia-se às instituições filiadas à IPA.
A similitude entre a instituição psicanalítica e o Estado militar tinha neste bordão a ilustração de um enlaçamento mais estrutural: a reprodução, em nível micro, da ordem político-institucional então vigente. Hélio Pellegrino classificava de “fascista” a estrutura das sociedades psicanalíticas, sublinhando que “pelo dedo se conhece o gigante; as microinstituições reproduzem, em escala liliputiana, as vicissitudes estruturais e as mazelas das macroinstituições” (Pellegrino, 1982, p. 31). Além disso, ainda segundo Pellegrino, a “ideologia do apoliticismo” produzia um “psicanalismo alienante”, através do qual as instituições psicanalíticas se colocavam camufladamente a serviço do sistema político-social vigente (ibid., p. 41). Em síntese, uma sociedade ditatorial e autoritária, baseada na acumulação de poder e de privilégios em mãos minoritárias, encontrava na sociedade psicanalítica seu fac-símile em escala reduzida.
Desse modo, retomando o que foi acima destacado, a manipulação da transferência empreendida nas análises didáticas produzia efeitos anti-analíticos, com destaque para a identificação com o analista didata e a produção de obediência (cf. Kupermann, 2014). A análise didática elevava o didata à posição de juiz e representante autorizado da instituição, recaindo sobre o espaço analítico uma sombra de retaliação que pende a análise inevitavelmente para o lado da obediência, falseando a própria relação analítica (cf. Birman, 1982). Pellegrino acreditava que a elite minoritária dos psicanalistas didatas detentores do poder institucional – o “baronato” – era mantida por essa mesma falsificação alienante do sujeito de seu próprio desejo. Assim, acrescenta:
Os candidatos, para chegarem a analistas, precisam antes e acima de tudo obedecer, isto é: submeter-se aos barões. Após receberem o brevet de analistas, como membros associados, nem por isto conquistam direito de voto. Esta possibilidade só virá anos depois, tempo em que o associado terá que dar provas de estar bem analisado, isto é: conformado, alienado, intimidado, eunuco. Aí poderá pleitear o título de membro efetivo, com direito a voto (Pellegrino, 1982, p. 41).
O caso Amílcar Lobo, situando-se no entrecruzamento da instituição psicanalítica e do estado de exceção, como candidato em formação analítica e médico torturador, não somente revela o enlace destas duas realidades macro e microinstitucionais; pode ainda ser considerado como uma produção do sistema de formação psicanalítica – sobretudo dos efeitos da manipulação da transferência nas análises didáticas. A análise do relato autobiográfico de Lobo, A hora do lobo, a hora do carneiro (1989), nos permite observar que a SPRJ, sociedade à qual pertenceu, não apenas acobertou e foi conivente com as práticas de tortura, como também colaborou ativamente para a manutenção da situação de ter candidato em formação psicanalítica participante destas mesmas práticas.
Demonstraremos, a seguir, os quatro aspectos do depoimento de Lobo destacados por Daniel Kupermann em Transferências cruzadas, que nos permitem explicitar a forma pela qual o caso foi, também, uma produção das próprias instituições19 psicanalíticas: 1) a identidade entre as práticas do Regime Militar e as da sociedade psicanalítica à qual pertencia; 2) a busca por uma palavra ou pensamento diferente do vigia no DOI-CODI, o que lhe teria sido negado institucionalmente; 3) a identificação de Lobo em sua formação psicanalítica com os torturados que atendia nos porões da ditadura; e 4) a introjeção maciça de interpretações, regulamentos e ideais propagados pelas instituições psicanalíticas (Kupermann, 1996; 2014).
Em relação à identidade entre as práticas do Exército e as da sociedade psicanalítica, Pellegrino (1982, p.45) ressalta que, baseado no artigo 33 do Regulamento da Formação de Psicanalistas do Instituto de Psicanálise da SPRJ, a formação de Lobo poderia ter sido interrompida, o que não ocorreu em função de uma “plena e prática definição política de seu didata”. O artigo previa a interrupção da formação do candidato em casos de a) surgimento de enfermidade grave que impeça o exercício da psicanálise; b) distúrbios e conduta que atentem contra os princípios do código de ética médica; e c) abandono do processo analítico – estando Lobo incluído em todos eles.
Mas qual seria, segundo Pellegrino, a “enfermidade” grave de Lobo? Foram consideradas, de acordo com uma nosologia inspirada na psicanálise, as seguintes alternativas: 1) perversão sádica; 2) caracteriopatia fascista grave, usada como justificativa ideológica para a prática de tortura; 3) pusilanimidade radical e indiscriminada diante de ordens superiores; e 4) mistura dos três itens, que não são excludentes (Pellegrino, 1982). Na leitura de suas memórias, fica patente que Lobo não se apresenta como defensor das práticas de tortura das quais participava mantendo os presos vivos para que seus verdugos continuassem o interrogatório, referindo-se inclusive aos outros membros da equipe de tortura como pessoas “extremamente sádicas” (Lobo, 1989, p. 69), atribuindo sua participação exclusivamente ao medo. Ora, mas não seria este o principal sintoma antianalítico que alguns sistemas de formação psicanalítica tendem a produzir? Mesmo que em seu testemunho, misto de confissão catártica e auto-absolvição, não confessasse um gosto particular pela tortura, Lobo revela, justamente “pusilanimidade radical e indiscriminada diante de ordens superiores”, confirmando a avaliação de Balint (1948) acerca da “intropressão do superego” aos quais os candidatos em formação psicanalítica estariam sujeitos, tornando-se excessivamente obedientes, não apenas aos seus analistas didatas, mas a todos os ideais veiculados pelas instituições das quais participam.
Quando a denúncia de Cuestionamos veio à tona, em 1973, Lobo escreve que havia tentado discutir seu caso nas reuniões semanais com os membros da SPRJ, mas que nenhum deles, “nem mesmo o Dr. La Porta, teve a lucidez de tecer ao menos um comentário”. No último dia de aula decidiu-se por “discutir abertamente e sem rodeios, com os colegas de turma e a professora, este tema tão chocante frente aos ensinamentos aprendidos neste curso (…) mas em vão” (Lobo, 1989, p. 53). Ora, por que esse silêncio? A psicanálise não tinha nada a dizer sobre o caso? Não se chocava com a tortura? Ou a psicanálise, como praticada naquela sociedade, não podia dizê-lo, rebatendo com risos, enfados e galhofas sem humor aos testemunhos de Lobo sobre o que ocorria no DOI-CODI? Lobo conta, inclusive, que um de seus colegas de formação psicanalítica, antecipando seu relato, repetia: “Lá vem mais uma história dos ‘macacons’. Conta lá, Amílcar – e ria gostosamente” (Lobo, 1989, p. 76).
Conforme vimos, um perfeito trabalho em conjunto entre as direções da SPRJ, da SBPRJ e da polícia revelou que a psicanalista Helena Besserman Vianna fora a autora da denúncia publicada na revista Cuestionamos. Desvendada a identidade da “deduradora”, como se disse na ocasião, o coronel Cid Nolli comentou com Lobo “(…) se esta sociedade psicanalítica está criando assim tantos problemas nesta área, nós fechamos esta birosca e já. Quanto a esta Dra. Helena, pode estar certo: a gente vai colocar uma bomba no consultório dela e (…) explodir tudo”. (Lobo, 1989, p. 70).
Leão Cabernite, ex-analista didata de Lobo e, ironicamente, homônimo do capitão Leão – chefe do Serviço de Informações do 1º Batalhão e Polícia do Exército, onde Lobo trabalhou – sugeriu-lhe em outra ocasião: “Amílcar, você que tem um conhecimento com estes militares, por que não sugere a eles que ponham uma bomba no consultório do Hélio. Esse cara já ultrapassou todos os limites e só tem este jeito” (Lobo, 1989, p. 88). Seria possível a uma mente “pusilânime radical diante de ordens superiores” encontrar sozinha a diferença entre as práticas do Regime Militar e aquelas da Sociedade Psicanalítica?
Quando, em 1976, tentou retomar sua formação psicanalítica, após a interrupção voluntária em 1974, Lobo não foi aceito em análise por nenhum didata (à exceção de Galina Schneider, sob a condição, porém, de que sua análise não fosse didática). Optou, então, por iniciar uma análise com um membro psicanalista não-didata da Sociedade aguardando sua titulação futura, o que não ocorreu – em 1980, seu analista completou sessenta anos e não poderia mais tornar-se didata, de acordo com os novos estatutos. Contrariado por ver seu projeto de tornar psicanalista impossibilitado definitivamente, Lobo comenta: “Mil vezes melhor uma sessão de interrogatórios num “pau-de-arara” ou uma tentativa simulada de afogamento. Foi uma verdadeira tortura esperar este tempo todo uma resolução prometida para receber, depois de quatro anos, verdadeiros socos e pontapés na face (Lobo, 1989, p. 84)”.
Podem-se observar, assim, identificações bastante eloquentes no testemunho de Lobo: a primeira que faz equivaler as práticas exercidas pelo Regime Militar com as da Sociedade Psicanalítica à qual estava vinculado; além daquela que compara sua própria situação como candidato em formação na Sociedade Psicanalítica com os presos políticos torturados. Nos porões da ditadura, que frequentou como agente ativo da tortura, a brutalidade era institucionalizada e naturalizada, e na Sociedade Psicanalítica, que retirou sua candidatura para deliberar – sem fornecer nenhum parecer final sobre seu caso –, Lobo não encontrou nenhuma palavra diferente da perversão institucionalizada que vivia junto ao Exército, sequer no sentido da condenação das práticas de tortura promovidas pelo Estado. Dessa maneira, surge uma questão imediata quanto à formação psicanalítica: se na tortura o modus operandi é a extração de confissões por meio da violência física e psicológica, qual seria o modus operandi que promove as diversas violências presentes no processo institucionalizado de formação psicanalítica? A manipulação da transferência para fins de exercício do poder e manutenção do status quo, como se quis demonstrar, cujos efeitos imediatos podem ser constatados pela incorporação maciça dos ideais psicanalíticos transmitidos pelos didatas – bem como pelas interpretações que cometiam, aceitas sem reservas nem reflexão por parte dos candidatos. Mais uma vez, recorremos ao depoimento de Lobo: ao contar ao seu primeiro analista didata, Antônio Dutra Júnior, as experiências de seu novo “trabalho” no DOI-CODI, que o deixaram com a “cabeça pesada”, o “estômago revolto”, e “desesperançado” (sintomas que, ao que parece, desapareceram bem rápido neste cidadão), relata que “foram interpretados apenas meus aspectos sadomasoquistas nas relações parentais (Lobo, 1989, p. 22)”.
Havendo incorporado maciçamente interpretações deste tipo, Lobo, na entrevista que deu à imprensa, em 1986, expõe ao grande público uma das maiores caricaturas de psicanálise da qual já se teve notícia. Lobo justifica sua impossibilidade de, à época, abandonar a equipe de tortura, referindo-se à sua primeira infância e a suas “duas mães”: Quando tinha seis meses de idade, sua mãe se ausentou por um longo período, deixando-o aos cuidados de outra pessoa. Quando de seu retorno, foi tirado dessa pessoa: “Então, todas as situações em que possam ocorrer mudanças (…) realmente me afetam muito, me impedem de executar essa mudança, entende? (…) Isso nem chegou a ser devidamente analisado. Isso seria o responsável por aquele meu comportamento”. “Não”, respondeu o jornalista, que não passou por nenhuma formação psicanalítica20. Esta declaração, feita mais de seis anos após o término da última análise de Lobo, sugere que as interpretações e o saber do analista didata – que ocupava o lugar de detentor onipotente da verdade – eram incorporados de forma estática, impossíveis de serem relativizadas ou devidamente elaboradas ao longo do tempo.
De fato, considerando-se que no modelo de formação psicanalítica então vigente o analista didata detinha um poder real quanto à habilitação do candidato, pode-se considerar que a situação assim estabelecida se assemelha àquela da clínica com crianças, na qual as crianças chegam à análise obedecendo ao desejo dos pais, com os quais experimentam uma relação de dependência real. O efeito consequente é a incorporação de supostos “ideais psicanalíticos” – no caso, aqueles alinhados à manutenção dos poderes na vida social e à reserva de mercado dos analistas didatas vigente na SPRJ -, tais como os regulamentos da formação, a representação do didata como detentor exclusivo do saber e a sua recíproca, a representação do candidato como aquele que não sabe, ao qual resta obedecer a ordem superiores. Ideais psicanalíticos autênticos – a abertura para a fala, a escuta do desejo e do sofrimento, o combate às hipocrisias culturais – tão presentes nos primórdios da invenção freudiana, foram providencialmente recalcados, e mesmo proibidos.
Para concluir, recorremos às considerações derradeiras de Kupermann (2014, p. 179):
No folclore popular brasileiro, carneiro é “maria-vai-com-as-outras”. Animal de rebanho, representante maior da psicologia de grupo, o carneiro é essencialmente obediente. Na sua forma feminina, temos, no sentido religioso, a ovelha do rebanho, mas também a “ovelha negra” – a desgarrada. Não se pode dizer que Lobo, em sua fase de Dr. Carneiro, tenha sido ovelha negra. Bom militar, foi o sexto colocado na turma de 36 aspirantes-oficiais do Exército (Lobo, 1989, p. 21). Bom aluno de psicanálise, era o primeiro entre 18 no curso de psicoterapia de grupo ministrado pelo Dr. La Porta (p.52). No final das contas, não fez mais do que “obedecer ordens superiores” (p. 99), e isto fazia bem. Não era esse o ideal propagado na formação psicanalítica? Triste herança que nossa psicanálise deixou, com a qual, entre o amor incondicional e o abandono, é preciso se haver.
* Publicado originalmente em “Analítica: Revista de Psicanálise, v. 3, n. 4, pp. 173-200, janeiro/junho de 2014
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Luiz Eduardo de Vasconcelos Moreira é psicanalista, formado em psicologia pela USP, onde cursa doutorado sobre dinheiro e pagamento na psicanálise. Membro do psiA – Laboratório de pesquisas e intervenções psicanalíticas do Instituto de Psicologia da USP e do Instituto Vox de Pesquisa em Psicanálise.
Lucas Charafeddine Bulamah é psicanalista, psicólogo, mestre em psicologia clínica pelo Instituto de Psicologia da USP, onde cursa doutorado. Membro do psiA – Laboratório de pesquisas e intervenções psicanalíticas do Instituto de Psicologia da USP. Autor de História de uma regra não escrita: a proscrição da homossexualiade masculina no movimento psicanalítico (Annablume, 2016)..
Daniel Kupermann é psicanalista, professor doutor do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), coordenador do psiA – laboratório de pesquisas e intervenções psicanalíticas do IPUSP. Autor de Transferências cruzadas: uma história da psicanálise e suas instituições (Escuta, 2014) e Ousar rir: humor, criação e psicanálise (Civilização Brasileira, 2003)..
1 Vinculada a Associação Psicanalítica Internacional, conhecida mundialmente pela sigla IPA (International Psychoanalytical Association).
2 Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/06/1295643-minha-historia-meu-marido-nao-foi-um-torturador.shtml.
3 Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/10/1350894-viuva-do-psiquiatra-Amílcar-lobo-presta-depoimento-sobre-sessoes-de-tortura.shtml.
4 Disponível em http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2013/10/02/viuva-de-militar-pede-perdao-a-ex-preso-por-tortura-no-doi-codi-no-rio.htm.
5 Disponível em http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,ERT150289-15219-150289-3934,00.html.
6 Disponível em http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI155932-15518,00.html.
7 Disponível em http://www.revistabrasileiros.com.br/2014/02/26/essa-culpa-nao-e-minha/.
8 Sobre esse tema, vide a obra organizada por Chaim Samuel Katz (1985).
9 Um “mapa” das sociedades psicanalíticas cariocas pode ser encontrado em Figueiredo (1989).
10 Para esta declaração e o laudo grafológico, ver “Documentos” em Vianna (1994, p. 195).
11 Para uma carta de Wildlöcher sobre o caso, escrita em 1996, ver Vianna (1997, pp. 275-8).
12 A reportagem encontra-se reproduzida em Clínica Social de Psicanálise (1981, pp. 9-17), e em Cerqueira Filho (1981, pp. 181-188). Pode ser encontrada também em formato digital no endereço http://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19810923&printsec=frontpage&hl=pt-BR.
13 Ver Katz, 1982, p. 268, para uma reprodução dessas duas reportagens.
14 Sobre a datação da carta, ver Vianna (1994, p. 186) e também a resposta de Pellegrino, em Cerqueira Filho (1982, p. 227).
15 Disponível em http://news.google.com/newspapers?id=q6YoAAAAIBAJ&sjid=180EAAAAIBAJ&hl=pt-BR&pg=6548%2C1618594
16 Disponivel em http://news.google.com/newspapers?id=raYoAAAAIBAJ&sjid=180EAAAAIBAJ&hl=pt-BR&pg=6728%2C2783290
17 Coimbra (1995) cita outra dissertação de mestrado, A construção do silêncio: o caso Amilcar Lobo e a Psicanálise, apresentado por J. L. de A. Franco em 1994 à UNB, trabalho ao qual, infelizmente, não tivemos acesso para a escrita desse texto. Em comunicação pessoal feita a Daniel Kupermann durante entrevista com o autor realizada para o periódico Gradiva (1993), Helena Vianna confessou que o surgimento de trabalhos acadêmicos empreendidos por jovens pesquisadores era o incentivo que faltava para que ela mesma, personagem de destaque nessa história, publicasse seu testemunho que, efetivamente, veio à luz pouco depois.
18 Ver também em Bulamah (2014), e em Bulamah & Kupermann (2013), de que modo a IPA manteve durante décadas, por meio de uma “regra não escrita”, a proscrição de candidatos homossexuais à formação psicanalítica.
19 Adotamos, aqui, recorrendo a etimologia, o sentido ativo de “instituição”, tal como proposto pela Análise Institucional Francesa: “fazer com que se mantenha de pé”. Nesse sentido, a análise didática, a interpretação, o mito do psicanalista bem analisado e, mesmo, os demais elementos do setting, podem ser considerados instituições psicanalíticas.
20 Jornal do Brasil, Caderno B – Especial, 14/09/1986.

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