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segunda-feira, 24 de julho de 2017

A condenação política de Lula, por Marcus Ianoni.

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A exceção tem se incorporado ao direito e à democracia no Brasil, subvertendo a ambos e convertendo-os à regressão, à imagem e semelhança do regime institucional apropriado ao conservadorismo neoliberal, cuja origem está no golpe parlamentar. Já mencionei aqui (em 27 set. 2016) que, para a Corte Especial do TRF4, “uma situação excepcional exige condutas excepcionais”. Essa pérola da racionalidade autoritária (usada e abusada nos regimes fascistas) foi proferida em resposta à representação que um conjunto de advogados interpuseram contra a revelação, pelo juiz Sergio Moro, do conteúdo da interceptação telefônica entre os ex-presidentes Lula e Dilma, em março de 2016, obtido ilegalmente. Na semana passada, esse mesmo juiz condenou Lula, motivado pela necessidade de lançar mão da exceção, uma vez que só ela, deformando a Constituição, é capaz de servir de instrumento farsesco para a condenação política da maior liderança do PT, muito baseada em delação premiada.
Vários juristas e advogados têm se oposto veementemente à sentença condenatória de Sergio Moro contra Lula. Segundo a Frente Brasil de Juristas pela Democracia, a sentença “expõe de forma clara a opção do julgador pelo uso do Direito com fins políticos, demonstrando nítida adoção do processo penal de exceção, próprio dos regimes autoritários. Para Dalmo de Abreu Dallari, “o Juiz Moro dá muitas voltas, citando fatos e desenvolvendo argumentos que não contêm qualquer comprovação da prática de um crime que teria sido cometido por Lula”. Os argumentos críticos são variados e abrangem diversos aspectos da sentença. Um elemento estrutural foi mencionado pelo cientista político Leonardo Avritzer: “É direito dedutivo com descarte de provas contrárias à opinião do juízo”.
Mais de uma centena de juristas nacionais e internacionais escreverão um livro para argumentar que o julgamento de Moro foi uma farsa. E toda essa encenação vem sendo erguida pelo populismo jurídico, que se dirige às massas visando agradá-las, para o que necessita da grande mídia, cuja influência sobre a opinião pública pode ser decisiva, como a longa conjuntura da crise brasileira tem evidenciado.
O combate à corrupção promovido pela Lava Jato tem sido encarado como uma bandeira política mais importante que o compromisso com o Estado Democrático de Direito. Sendo Lula visto como o comandante máximo de uma organização criminosa, conforme expresso no famoso episódio do Power Point de Dallagnol, há que se condená-lo, prendê-lo e excluí-lo das eleições de 2018, para que uma nova política purificada passe a vigorar no país. Lembre-se que a Lava Jato foi também peça fundamental na construção do ambiente político e social que levou ao controverso impedimento da presidenta Dilma Roussef, abrindo uma fissura institucional muito séria no regime, propensa a induzir à instabilidade política e à perseverança temporal da crise de legitimidade do sistema representativo. O impeachment foi também visto por alguns atores que o apoiaram como um momento da idealizada e ingênua purificação política.
Obviamente, há opiniões de profissionais do meio jurídico favoráveis à decisão de condenação de Lula. A régua para avaliar certos fatos depende de valores, ideologias etc. Mas o relativismo tem limites. A margem de liberdade de interpretação valorativa de fatos do direito está sujeita ao crivo social. E o homem público tende a se ajustar à ética da responsabilidade, que é consequencialista. O país está dividido em relação a vários temas e a condenação de Lula é uma questão-chave. Ele é a maior liderança política do Brasil atual, dirigente do partido político cuja legenda, apesar do desgaste recente, ainda ocupa o primeiro lugar nas preferências partidárias dos eleitores e, sobretudo, Lula está posicionado no topo das pesquisas de intenção de voto presidencial para as eleições de 2018. O maior objetivo da condenação de Lula, segundo várias opiniões, inclusive a minha, é impedi-lo de concorrer às eleições do ano que vem. A decisão de Moro expressa a consumação da forte tendência da República de Curitiba e de seus aliados midiáticos, observada desde 2014, no sentido de condenar Lula de antemão, por motivo político-ideológico.
Uma breve digressão. Várias vozes, como a do cientista político Bruno Wanderley Reis, avaliam que a delação premiada deveria ser utilizada exclusivamente para combater o crime organizado, não a corrupção, devido à destruição imediata que esse instrumento provoca no sistema político, ao mesmo tempo em que tal caminho não aponta para um ponto final melhor que o ponto de partida. Ele sugere um “processo de ajustamentos sucessivos de conduta”. Ademais, a questão fundamental do financiamento privado das campanhas eleitorais tem sido pouco abordada pelo partido da moralização, a começar pela grande mídia.
Note-se que a não aprovação, pela CCJ da Câmara, da autorização para que Temer seja processado pelo STF por crime de corrupção é apenas uma evidência da ruptura entre o “partido da delação premiada” e o “partido do presidencialismo de coalizão”. Essa blindagem seletiva do sistema político à corrupção governista é uma evidência de que o projeto político policialesco de combate à corrupção está divorciado da classe política. Essa tensão é contraproducente, seja para a perspectiva do combate à corrupção, seja para a perspectiva de se avançar rumo a uma institucionalidade política e a uma classe política mais próximas do denominado interesse público. O resultado atual é que o país é uma nau à deriva.
A absolvição pelo TRF4 de João Vaccari, ex-tesoureiro do PT, após ter sido condenado por Moro, abre uma fresta de esperança em alguma retomada do garantismo jurídico perdido no ambiente de euforia criado com a aplicação do método das delações premiadas para investigar crimes de corrupção, ou seja, crimes que envolvem duas partes, por um lado, políticos e funcionários públicos e, por outro, o setor privado. Se o PT não conseguiu escapar do modus operandi irregular envolvido no financiamento político pelas grandes empresas, ao qual se seguiam contrapartidas em obras, serviços públicos, leis e decisões administrativas pró-financiadores, não é por isso que se pode aceitar uma condenação forçada, com caráter de exceção, na qual parte-se de um pressuposto inaceitável: a presunção de culpa, ainda por cima, politicamente motivada. A absolvição de Lula pelo TRF4 é indispensável. Sem isso, a barbárie do sistema político brasileiro e o retrocesso no Estado de direito tendem a aumentar, levando o conjunto do país a reboque. O partido da esquerda não vai aceitar que o partido da direita faça isso com o maior líder da democracia brasileira. A crise política tende a dificultar a superação da crise econômica, embora essa última diga respeito também às escolhas de políticas públicas, o que é outra estória... 
* Marcus Ianoni é cientista político, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), realizou estágio de pós-doutorado na Universidade de Oxford e estuda as relações entre Política e Economia

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