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terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Helio Luz: Intervenção não pode se resumir a envio de capitão do mato à senzala do século 21', por BBC.l

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Os diagnósticos incisivos de Hélio Luz, ex-chefe da Polícia Civil no Rio, ficaram marcados na memória de quem, há quase 20 anos, o assistiu no documentário "Notícias de Uma Guerra Particular", descrevendo uma polícia que foi "criada para ser violenta e corrupta" e teria papel de "garantir uma sociedade injusta".
"Como você mantém os excluídos todos sob controle, ganhando R$ 112 por mês? Com repressão", disse aos diretores João Moreira Salles e Kátia Lund, na época em que chefiava a Polícia Civil fluminense, entre 1995 e 1997, referindo-se ao valor do salário mínimo de então.
Aos 72 anos, Luz está aposentado, afastado da vida pública e vive com a família em Porto Alegre, onde nasceu. Mas continua acompanhando de perto as notícias da guerra particular que não acaba no Rio.
Em entrevista à BBC Brasil, ele faz o esforço constante de deslocar o foco das favelas, que têm sido objeto de operações policiais e militares, e apontar o espelho de volta para as elites, para a classe média e para as forças de segurança.
"Por que cercar a favela, se o crime não está ali? O cerne da questão da insegurança não está ali. Aquilo ali é o resultado", afirma, considerando que os "meninos que estão no tráfico" são produto da desigualdade social.
Luz considera que a intervenção federal pode trazer benefícios se deixar de lado ações ostensivas nas favelas - que equivalem a "enxugar gelo" e estigmatizam os moradores - e trabalhar para recuperar as estruturas policiais, neutralizando a ação de agentes corruptos e fazendo com que os "mocinhos" - integrantes do sistema de segurança - façam jus à designação popular.
"O problema do Rio não são os bandidos. O problema do Rio são os mocinhos. Se ele recuperar o quadro de mocinhos, ele pode dar uma atenção real ao quadro de bandidos", afirma.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
BBC Brasil - Como o senhor se posiciona em relação à intervenção federal?
Hélio Luz - Eu entendo que a intervenção é constitucional. É inédita, mas é constitucional. A discussão está sendo muito reduzida ao oportunismo político de quem detém o poder. Foi uma medida oportunista? Foi, e nisso está longe de ser a primeira.
Mas acho que temos que ter uma discussão mais consequente. Estamos falando do problema de segurança da população do Rio. Há uma questão real e podemos ter uma conversa séria sobre isso.
Não vou falar no interventor, que é um cargo político, e sim no general Braga Netto, que manda no Comando Militar do Leste. O CML é o mais antigo e o mais completo arquivo de informações sobre os integrantes das polícias Civil, Militar e dos bombeiros do Estado do Rio. A troca de informação do Exército com as polícias é constante. A segunda seção das Forças Armadas sabe de tudo.
Outros comandantes do CML tiveram acesso a essas informações, mas não podiam fazer muita coisa. Agora o general tem acesso a essa inteligência e pode agir com base nela. Pode mudar o comando e mexer nas polícias. Isso é inédito.
BBC Brasil - Mas a intervenção tem data para acabar, dia 31 de dezembro. É possível resolver problemas estruturais na área de segurança?
Hélio Luz - Não, para isso, ele precisaria de mais tempo e de uma discussão mais ampla sobre um projeto de segurança. Mas ele pode recuperar a estrutura existente.
O grande problema que temos é quem executa a segurança pública. Os integrantes das polícias Militares e Civil. Se o general recuperar as estruturas internas, os agentes que provocam a insegurança ficarão limitados ao ambiente externo.
O problema do Rio não são os bandidos. O problema do Rio são os mocinhos. Se ele recuperar o quadro de mocinhos, ele pode dar uma atenção real ao quadro de bandidos.
BBC Brasil - O mocinho é o policial?
Hélio Luz - Não só o policial. São os integrantes do sistema de segurança que operam no Estado do Rio. Pode ser bombeiro, agente penitenciário, policial rodoviário. É preciso transformar o mocinho em mocinho.
Crime organizado pressupõe atuação a nível nacional, formação de um cartel e inserção nos poderes da República. O que denominam "bandidos" no Rio, e tenho ojeriza a isso, não é crime organizado. O tráfico no Rio não é cartelizado e disputa permanentemente a área geográfica. Não tem um exército ou integrantes constantes. Tem muitos problemas internos.
O pessoal não percebe que isso é um produto da sociedade. Esses meninos que estão no tráfico são um produto direto nosso, da classe média, dos detentores do poder desse país.
BBC Brasil - São um produto da desigualdade social?
Hélio Luz - São um produto da concentração de renda. E não venha me dizer que a Índia ou outros países com desigualdade não têm esse problema. Aqui é diferente, pô. O nosso nível de concentração de renda é muito alto e resulta nisso.
A favela é produto nosso. Como é que não é produto dos que detêm o poder? Como é que não é produto da classe média? É produto meu. Como é que eu tenho aposentadoria integral e não tenho responsabilidade sobre a favela? Para eu ter meus privilégios, tem que existir favela. Isso é óbvio. O dinheiro público é um só. Se eu abocanho uma maior parte, falta do outro lado. Não há saída para isso.
Ele (o general) tem condição de recuperar as estruturas policiais e beneficiar o segmento que mais sofre com essa parafernália toda, o favelado, que é estigmatizado.
Lógico que para isso ele vai precisar de um grupo de policiais civis e militares que não usem o tal do guardanapo da cabeça. Não pode. Polícia que gosta de botar guardanapo na cabeça não serve para recuperar.
BBC Brasil - O senhor está falando do ex-governador Sérgio Cabral e do famoso jantar em Paris, com a farra dos guardanapos na cabeça.
Hélio Luz - É isso. Você pode ter um guardanapo para limpar a sua boca, com dinheiro privado. Na hora que você bota o guardanapo na cabeça, é dinheiro público.
Retirar a turma do guardanapo na cabeça é difícil, mas o general pode isolá-los, neutralizá-los. Não precisam ser todos. Na hora que neutraliza uma parte considerável, o restante se enquadra.
A partir disso, ele tem condições de reduzir as ações de vigilância ostensiva que essas GLOs (operações militares para Garantia de Lei e da Ordem) fazem, com tropas nas favelas estigmatizando essas áreas. Como se o problema estivesse dentro das favelas. Não está.
Como ele tem um comando inédito do sistema, ele pode priorizar investigações integradas e coordenadas para prender os agentes externos da insegurança.
Eu tenho muita dificuldade de chamar de bandido. Aqui no Brasil, chamar o pessoal que mora na favela de bandido é de uma incoerência tremenda. O bandido brasileiro usa terno e gravata.
Se ele (o general Braga Netto) quiser aprofundar as investigações, ele vai parar nas mesas de câmbio que operam na avenida Rio Branco (no centro do Rio).
Ninguém pode imaginar que o menino da favela tenha capital o suficiente para bancar os entorpecentes que circulam ali. Quem detém o capital que financia as drogas tem uma mesa que opera câmbio na Rio Branco e um filho que frequenta bons colégios. Se o general chegar lá, aí realmente vai estar combatendo o crime e melhorando as condições de segurança do Rio.
BBC Brasil - O senhor diz que o general pode reduzir a ação ostensivas nas favelas, mas a expectativa é que essas ações possam aumentar, e semana passada vimos operações militares inclusive com fichamento de moradores.
Hélio Luz - O problema é que até agora foram operações de GLO, e elas repetem o trabalho de vigilância que a polícia já fazia.
Se ficar operando nessa linha, só vai enxugar gelo. Vai ocorrer o mesmo de sempre. O pessoal (os traficantes) se afasta porque não quer confronto, mas depois retorna.
Por que fazer uma operação para cercar uma favela, se o crime não está ali? O cerne da questão de insegurança não está ali. Aquilo ali é resultado.
BBC Brasil - Em Notícias de Uma Guerra Particular, o senhor diz que a sociedade brasileira tem a polícia que quer, que garante uma elite com privilégios e uma lei que não vale para todos. O senhor acha que isso mudou?
Hélio Luz - Essa pergunta é difícil. Acho que o Brasil que vivemos na década de 60 mudou. Tivemos avanços. Naquela época não podia se falar nada sobre um senador (sobre ações ilícitas). Hoje em dia, um senador está vulnerável.
Mas um dos grandes problemas que temos nesse país é a tolerância com a ação à margem da lei. Vivemos em um tempo em que é admitido você ficar na franja. Os atos inconstitucionais estão se normalizando. A violação à lei está sendo admitida com muita tranquilidade.
Qual é a referência que se dá ao infrator que está lá na ponta? Quando a infração é praticada pelo excluído, você chama o Exército. Quando é praticada pela classe média e pelos detentores do poder, nada.
Se a lei é para ser cumprida na favela, é para ser cumprida por todo mundo. Ou a lei vale para todos ou não vale para ninguém.
BBC Brasil - No documentário, o senhor disse que a repressão policial evitava uma explosão social, mantendo o excluído sob controle. Essa lógica prevalece?
Hélio Luz - Sim. Na África do Sul, eles colocavam cerca de arame. Aqui não precisa colocar a cerca, porque cada um sabe o seu lugar. Então para quê você vai colocar uma operação dessas cercando a favela? O crime não está ali. Entende? O cerne da questão da insegurança não está ali. Aquilo ali é resultado.
Agora, a má distribuição de renda voltou a se acirrar, a polícia não deu mais conta e teve que chamar o Exército.
BBC Brasil - O senhor fala na concentração de renda, mas isso explica o fortalecimento das facções criminosas e as crescentes disputas por territórios?
Hélio Luz - Desculpe, mas isso é uma visão que só quem tem privilégios nesse país pode ter. Porque localiza a disputa lá na ponta. "Não, não somos nós que participamos disso. São eles." Eles quem? Os excluídos do patrimônio público. A guerra está entre eles, mas é sustentada pela turma de cima.
É preciso estabelecer uma relação entre o auxílio-moradia (benefício pago a juízes) e a parte considerável da população que não tem moradia. Essa relação causa-efeito existe nesta e em inúmeras questões.
Em todas elas, quem paga a conta no final é o favelado. Somos o país da desigualdade. E ficamos preocupados porque tem problema, entende, na senzala. Afrouxou a senzala, então agora tem que apertar de novo. Então chama o capitão do mato para dar uma solução na senzala do século 21.
O problema social está no centro da questão da favela, e a questão de segurança do Estado é uma decorrência. Quem financia a droga que está lá? É um deboche achar que o favelado tem capital suficiente para bancar a ida, vinda e perda de qualquer quantidade de entorpecentes.
BBC Brasil - Não seria o favelado que teria esse dinheiro, mas sim as facções criminosas.
Hélio Luz - Será que elas têm? Qual é a herança deixada por traficantes? Qual foi a herança deixada pelo Uê (Ernaldo Pinto de Medeiros, fundador da facção Amigos dos Amigos)? Qual é o acúmulo de todos esses chefetes que existiram?
BBC Brasil - Mas não é patrimônio acumulado, e sim de capital de giro do tráfico.
Hélio Luz - Eles não têm dinheiro acumulado. Como é que você acumula dólar? Vemos muitas simplificações quando se fala sobre o tráfico. Aí mostram a mansão do chefete que foi preso na favela. É ridículo isso. A cobertura dele é num terceiro andar com piscina na laje. Perto dos prédios que existem na Vieira Souto, na Delfim Moreira (na orla de Ipanema e Leblon). Qual é o conceito de mansão?
Fala-se que que eles acumulam dinheiro e estão bem organizados. Onde, se estão disputando boca por boca (de fumo)? Onde há crime organizado com disputa de território permanente? Não existe. Se o cara tivesse dois milhões de dólares disponíveis, ele saía da favela e ia ser rentista (risos).
BBC Brasil - Vemos sucessivos exemplos de traficantes presos que continuam a dar ordens de dentro da prisão, com o Nem da Rocinha. Como isso ainda acontece?
Hélio Luz - Essa condição quem dá é o sistema de segurança. O cara faz o controle por meio de agentes penitenciários. Ou é só o ex-governador (Sérgio Cabral) que tem acesso a uma comida especial (no presídio)? O mesmo caminho é usado no Rio, no Paraná ou em qualquer Estado. O sistema de segurança é vazado.
A classe média tem uma visão distorcida disso. Acha que a ponta está se organizando. Nada disso. É a desorganização do sistema penitenciário que permite que ordens saiam dos presídios.
Nós vivemos muito de ilusão. É muita ficção. A tomada do Alemão foi uma ilusão. O Complexo do Alemão nunca foi tomado. Mas por um momento aquilo (a operação de ocupação realizada por forças de segurança em 2010) gera uma sensação de segurança, e você se ilude.
Quem detém o controle? Quem recebe a corrupção ou o cara que paga? É o agente que recebe a corrupção. É quem recebe a grana. Se não pagar para a polícia, de duas uma, ou você se muda, ou vai para a vala.
Sem pagar a polícia, não se pratica crime no Rio de Janeiro.
BBC Brasil - Os problemas de segurança no Rio hoje não parecem muito diferentes da sua época à frente da Polícia Civil, nos anos 1990. Que perspectiva o senhor vê para o futuro?
Hélio Luz - Eu sou otimista. Acho que essas crises são crises de avanços. Não estamos em uma situação horrível. Quem viveu nos anos 60, 70 sabe que jamais se podia apontar o dedo para um senador.
Tudo que está acontecendo (os casos de corrupção) acontece há muito tempo nesse país. Sempre houve, mas agora nós sabemos. Agora vem a público. O Marcelo Odebrecht passar quase dois anos numa prisão é simbólico. A exposição do Judiciário com o caso do auxílio-moradia é simbólico.
Ainda é pouco, mas estamos avançando. Os desdobramentos são feitos à brasileira. É uma revolução republicana sem sangue. Aos poucos, a república vai se instalando.

Esquerda, direita e o embargo da memória, por Eliane Brum.

Como no Brasil atual o original e o realmente novo são silenciados para que os discursos viciados possam ser mantidos para a ocupação do poder

Ribeirinho no lago morto de Belo Monte
Ribeirinho no lago morto de Belo Monte
Após a condenação de Luiz Inácio Lula da Silva em segunda instância, intelectuais bastante respeitáveis defenderam, no campo da esquerda, mais uma vez, que não é hora de debater os 13 anos do PT no poder. A justificativa é a de que o momento exige que a esquerda e a centro-esquerda se unam para enfrentar a direita, em nome da democracia. Ao mesmo tempo, no campo da direita, que tampouco é coesa, Michel Temer (MDB) e as forças que o sustentam no poder, apesar das denúncias de corrupção (ou por causa delas), inventaram uma operação militar no Rio de Janeiro como mote popular para ter peso e influência na eleição de 2018.
Num campo, apresenta-se uma demanda para embargar a memória. No outro, usa-se a marquetagem política para silenciar realidades, criando um espetáculo. Ao ser produzida como factoide, caso da intervenção federal no Rio, o ato encobre o fato. A segurança é uma questão urgente. Mas não é possível enfrentá-la sem admitir que a política de “guerra às drogas”, que já foi abolida em partes mais sérias do mundo, é parte determinante do aumento da violência.
Em vez de admitir a falência da política de “guerra às drogas”, Temer consolida com a operação militar a guerra também como estética
Em vez disso, consolida-se, pela escolha de uma operação militar, com soldados e tanques nas favelas e comunidades pobres, a guerra também como estética. De espasmo em espasmo, toda a atenção e a energia são deslocadas tanto para construir o espetáculo como para desconstruí-lo, como se testemunhou desde o anúncio da operação que tragou as atenções no Brasil e a maior parte do noticiário. Enquanto isso, o país se arruína um pouco mais.
Não pretendo usar mais parágrafos para analisar a intervenção federal no estado do Rio de Janeiro como silenciamento das causas reais de uma violência que tem destruído as vidas dos mais pobres, em muito maior número a dos jovens negros. Há uma quantidade considerável de análises consistentes em circulação, produzidas por gente que se dedica ao tema há muitos anos. Meu ponto nesse artigo é analisar o silenciamento produzido no campo da esquerda ligada a Lula e ao PT. E como esses silenciamentos, só aparentemente polarizados, se conectam e se confundem.
A recente declaração do comandante do Exército ilumina a questão: o general Eduardo Villas Bôas afirmou, em 19 de fevereiro, que os militares que atuarão na intervenção no Rio precisam de “garantias para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade”. O que significa essa declaração? Que haverá torturas, sequestros e assassinatos de civis nas favelas e comunidades do Rio de Janeiro como houve na ditadura civil-militar (1964-1985)? Que o general quer “garantias” para que as tropas possam torturar, sequestrar e assassinar civis em nome do Estado, na operação do Rio, sem responder por isso? Que o general quer quebrar a lei e oficializar o Estado de exceção?
A crise da democracia é global, mas há algo de particular na crise de cada país. Já escrevi em artigo anterior que acredito que as raízes da atual crise da democracia no Brasil estão no próprio processo de retomada da democracia, após 21 anos de ditadura. As raízes da atual crise brasileira estão no apagamento dos crimes do regime de exceção e na impunidade dos torturadores e assassinos a soldo do Estado.
Uma democracia que ultrapassa os 30 anos sem lidar com seu passado contém um forte fator de desestabilização
Ao retomar a democracia sem lidar com os mortos e os desaparecidos da ditadura civil-militar, o Brasil seguiu adiante sem lidar com o trauma. Um país que, para retomar a democracia, precisa esconder os esqueletos no armário – ou em covas clandestinas – é um país com a democracia deformada, no qual as fardas são sempre um ponto de instabilidade assombrando o cotidiano. Uma democracia deformada está aberta a mais deformações, como a história recentíssima do Brasil é pródiga em provar.
A desmemória não é um traço banal na história do Brasil. Ela costuma ser defendida como um “agora não é hora”, “este não é o momento”, “depois a gente cuida disso”. Foi assim com a Lei da Anistia, de 1979, que até hoje grupos da sociedade lutam para rever com o objetivo de fazer a justa responsabilização dos torturadores e assassinos do regime. O ato mais significativo para lidar com a memória do período de exceção foi justamente a Comissão da Verdade sobre os crimes da ditadura, que tanto preocupa o general, e a série de movimentos em torno dela, como as Clínicas do Testemunho pelo Brasil afora.
Esse processo de produção e documentação da memória sobre a ditadura foi, porém, interrompido pelo atual governo. O fato de que a democracia no Brasil supera os 30 anos sem lidar com o passado autoritário é um forte fator de desestabilização que costuma ser minimizado. Os efeitos do apagamento estão visíveis hoje nas ruas.
A esquerda ligada a Lula e ao PT tem atuado para embargar a memória
O Brasil é carente de uma direita com postura responsável e projeto consistente, capaz de pensar o país para além da política rasteira de ganhos privados e locupletações imediatas. O campo da direita não é coeso, mas nele predomina o discurso tosco, que tem nas bancadas do boi, da bala e da bíblia do Congresso, assim como nas milícias da internet, sua expressão mais barulhenta. Forjar realidades falsas se impôs como modo de operação, como por exemplo a recente difusão de que os espaços da arte estavam tomados por pedófilos. No caso das milícias, o próprio anúncio de uma filiação liberal é uma falsificação, na medida em que a prática contradiz os valores liberais mais básicos.
Neste momento, porém, chama a atenção como a esquerda ligada a Lula e à parte do PT tem atuado para embargar a memória. Caminham neste sentido os ataques àqueles que buscam refletir sobre os 13 anos do PT no poder, associado intimamente ao PMDB a partir do segundo mandato de Lula, e o papel desempenhado pelo partido, por Lula e por Dilma Rousseff na atual situação do Brasil.
A pedra que barra a operação de apagamento nas biografias de Lula, Dilma Rousseff e do PT se chama Belo Monte
Nenhum projeto de esquerda ou de centro-esquerda para o país faz sentido se, para se manter, precisa apagar capítulos da história. Por todas as razões e porque não se pode construir um projeto responsável de país sem a compreensão de onde se errou, assim como a consequente responsabilização pelo que foi causado pelos erros. É possível cogitar a hipótese de que, se tantos não tivessem silenciado após a primeira denúncia do mensalão e adiado a crítica e a autocrítica para um dia que nunca chega, os rumos poderiam ter sido diferentes também para Lula, Dilma Rousseff e o PT.
A pedra que barra a operação de apagamento nas biografias de Lula, de Dilma e do PT se chama Belo Monte, uma das maiores obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Não é uma pedra, mas milhares de toneladas de aço e cimento no rio Xingu, no Pará, sob as quais pairam a suspeita de propinoduto nas investigações da Lava Jato. A forma como a usina saiu do papel, depois de décadas de resistência dos povos indígenas e dos movimentos sociais da região, é claramente suspeita desde pelo menos o leilão, em 2010.
Mas, nesta área, a da Lava Jato, sempre se pode negar e alegar inocência para a opinião pública. A forma e a rapidez com que o processo de Lula foi conduzido na Justiça, no caso do tríplex do Guarujá, a fragilidade das provas e o comportamento pouco convencional de juízes de ambas as instâncias, que opinaram antes de julgar, conduzem a dúvidas razoáveis sobre a legitimidade das sentenças, embaralhando ainda mais a paisagem já bastante enevoada do Brasil atual.
Em Belo Monte, porém, as violações ao meio ambiente e aos direitos humanos, promovidas durante os governos do PT, são literalmente visíveis. E bastante difíceis de explicar quando um político e um partido afirmam defender o povo – e afirmam serem perseguidos por defender o povo.
Como explicar que milhares de famílias foram expulsas de suas casas, terras e ilhas ou “removidas forçadamente”, sem nenhuma assistência jurídica, muitas delas assinando com o dedo papeis que eram incapazes de ler? Como explicar que as greves de operários da usina, assim como as manifestações contra Belo Monte promovida por indígenas, ribeirinhos, pescadores, agricultores e moradores urbanos de Altamira foram reprimidas pela Força Nacional no período em que o Partido dos Trabalhadores estava no poder?
Como explicar que o PT permitiu, quando não apoiou, que a obrigatoriedade da proteção dos povos indígenas durante a construção da usina, assim como das ações de mitigação de seus efeitos sobre o rio e a floresta, se desvirtuasse num fluxo de mercadorias? Que as aldeias indígenas, mesmo as de recente contato, recebessem de TV e colchão a açúcar e refrigerantes, produzindo o que foi caracterizado formalmente pelo Ministério Público Federal como “etnocídio” (morte cultural), sem contar um aumento de mais de 100% na desnutrição de crianças indígenas entre 2010 e 2012?
Como explicar que a violência urbana disparou, em grande parte por causa do processo de Belo Monte, e Altamira se tornou o município com mais de 100 mil habitantes mais violento do Brasil, segundo o Atlas da Violência de 2017, produzido pelo Instituto Econômico de Pesquisa Aplicada (IPEA) e pelo Fórum Nacional de Segurança Pública? Como explicar que os bairros construídos para abrigar as famílias expulsas de suas casas não cumprem os requisitos mínimos determinados durante o licenciamento da usina e hoje se tornaram os novos territórios de violência de Altamira, com casas que já exibem rachaduras e se deterioram de forma acelerada?
Parte da esquerda, que historicamente lidera a luta pelos direitos humanos no Brasil, calou-se diante das violações de direitos
Como explicar?
Não é de hoje que Belo Monte é uma pedreira inteira no caminho do discurso de Lula, Dilma Rousseff e do PT. Mas parte significativa da esquerda, que historicamente lidera a luta pelos direitos humanos no Brasil, calou-se diante do que acontecia – e acontece – no Xingu pela imposição de Belo Monte. Em vez de enfrentar as contradições, preferiu silenciar diante delas, silenciando-as. Como se chama isso do ponto de vista da ética?
Já a direita sempre apoiou a construção de Belo Monte, como grande obra de infraestrutura e oportunidade de negócios. Vale a pena não esquecer que o ex-várias vezes ministro da ditadura Delfim Netto foi um dos artífices do leilão da usina. Belo Monte só se tornou notícia negativa na maior parte da imprensa quando apareceu nas delações da Lava Jato e passou a interessar enfraquecer o PT com vistas ao impeachment de Dilma Rousseff.
Um dos últimos atos midiáticos da ex-presidente foi justamente inaugurar Belo Monte, o que mostra o tamanho da convicção de Dilma sobre a construção da usina. “Quero dizer que esse empreendimento de Belo Monte me orgulha muito pelo que ele produziu de ganhos sociais e ambientais”, discursou. A hidrelétrica é questionada por violações de direitos humanos e ambientais em 24 ações do Ministério Público Federal. As violações cometidas pelo Estado brasileiro na construção da usina estão sendo examinadas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Mesmo assim, Belo Monte é vendida hoje como “fato consumado”. Com frequência, mencionar Belo Monte em espaços da esquerda ligada a Lula e ao PT significa ouvir: “Mas ainda esse assunto? Belo Monte já foi”. A questão é: fato consumado para quem?
Como o “salvador dos pobres” produziu pobres?
Certamente não para os atingidos. Neste momento, Belo Monte se tornou uma pedreira ainda maior. Será interessante observar quanto mais ela ainda terá de aumentar de tamanho para que aquilo que aconteceu – e acontece – no Xingu seja finalmente visto em toda a sua proporção e significados.
Neste momento, Belo Monte se tornou uma pedreira maior também no caminho do discurso de Lula, porque é cada vez mais visível que a gigantesca obra do PAC produziu um contingente de pobres urbanos. O período em que o PT ocupou o poder foi decisivo para uma grande parcela de brasileiros, que já estavam nas periferias, melhorar sua qualidade de vida. É um fato. No Xingu, porém, e em outras regiões amazônicas, o que aconteceu foi um processo de conversão de povos tradicionais em pobres urbanos. Este também é um fato, que tenho documentado desde o início do processo.
Assim como um fato sustenta o discurso de Lula, Dilma e do PT, este outro fato coloca esse mesmo discurso em xeque: como “o salvador dos pobres” produziu pobres?
Pelo menos 378 famílias de ribeirinhos do Xingu reivindicam hoje a criação de um território coletivo para que possam recuperar seu modo de vida destruído por Belo Monte. A maioria dessas famílias vive em situação de pobreza, algumas delas em situação de extrema pobreza. No início de fevereiro, o Conselho Ribeirinho, que reúne os representantes de cada região do Xingu onde houve deslocamento de pessoas, esteve em Brasília para exigir a criação do território e já apresentaram um mapa com a proposta.
O Conselho Ribeirinho é apoiado e assessorado na reivindicação por organizações como Xingu Vivo Para Sempre e Instituto Socioambiental (ISA), pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), pelo Ministério Público Federal (MPF), pela Defensoria Pública da União (DPU) e pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos, entre outros apoios. Dois dos mais renomados antropólogos do país, Manuela Carneiro da Cunha e Mauro de Almeida, mostraram tanto a legitimidade como a urgência da criação de um território coletivo durante seminário na Universidade de Brasília, em 6 de fevereiro, do qual participaram também a presidente do IBAMA, Suely Araújo, e representantes da Secretaria do Patrimônio da União e da Casa Civil.
A Norte Energia, empresa concessionária de Belo Monte, convidou o antropólogo José Augusto Laranjeiras Sampaio para analisar a questão, e ele foi enfático ao defender os direitos dos ribeirinhos ao seu modo de vida. Governo e Norte Energia se comprometeram a estudar a proposta e discutir uma primeira avaliação das áreas em março. A empresa se comprometeu também a ampliar para todas as famílias reconhecidas pelo Conselho Ribeirinho um valor mensal de cerca de 900 reais para garantir um sustento mínimo enquanto não há solução definitiva.
O impasse é como esse processo vai se desenrolar com um consórcio que violou sistematicamente os direitos humanos e ambientais ao construir e operar a usina e um governo do (P)MDB que é parte integrante da arquitetura política e econômica – e, suspeita-se, de propinas – que viabilizou a implantação de Belo Monte. Há temores de que a crescente tensão na região esteja apenas sendo contida para não gerar más notícias em ano eleitoral e para não aumentar ainda mais o passivo social, ambiental e jurídico de uma usina cuja possível venda chegou a ser anunciada pela imprensa, informação que é negada pelos sócios.
“Quero território pra ser”, diz a ribeirinha Rita Cavalcante
O projeto de privatizar a Eletrobras, uma das estatais que compõem a Norte Energia, também poderia estar pesando na atual postura conciliadora. Só os próximos capítulos vão iluminar se há real disposição de criar um território ribeirinho, o que depende tanto da compra de áreas de fazenda pela Norte Energia quanto da destinação de terras da União.
Para os ribeirinhos, porém, o ritmo da fome não é o da burocracia. E o desespero aumenta a cada dia. “Quero território pra ser”, afirmou a ribeirinha Rita Cavalcante em Brasília, com a linguagem de amplidão que caracteriza essa população tradicional. Ela pontua assim a diferença entre terra e território, a terra ligada ao conceito de mercadoria, o território como identidade, como corpo, como foi apontado pelos antropólogos. Pontua também a diferença entre reassentamento e reterritorialização, como foi evidenciado pela procuradora da República em Altamira, Thais Santi.
Os ribeirinhos são uma pedreira tanto no caminho da direita quanto da esquerda ligada a Lula porque encarnam um modo de vida que se contrapõe a “tudo o que está aí”. Não é que eles pregam ou defendem. É de outra ordem: eles encarnam, vivem. Uma das populações menos compreendidas do país, o que se chama hoje de “ribeirinhos” ou “beiradeiros”, palavra que pessoalmente eu prefiro, surgiu nos rios amazônicos com a exploração do látex para a produção de borracha.
A maioria dos atuais ribeirinhos descende de nordestinos pobres que foram carregados para a Amazônia no final do século 19 para se tornarem seringueiros e/ou de soldados da borracha na Segunda Guerra Mundial (1939-45). Sempre que a produção da borracha deixou de ser interessante para o mercado, por uma razão ou outra, foram abandonados na floresta. Lá muitos formaram famílias com mulheres indígenas, parte delas roubada das aldeias, e criaram um modo de vida distinto. Às vezes numa margem do rio, às vezes em outra.
Quando a grilagem avançou sobre a floresta, muitos migraram para as ilhas dos rios amazônicos, o último reduto. Pescam, caçam, plantam uma roça de subsistência, fazem farinha, quebram castanha, tiram açaí, se há interesse voltam a cortar seringa, às vezes garimpam um pouco, alguns criam porcos ou galinhas, as atividades variam com a época do ano e também com as demandas do mercado.
Vivem em total acordo com a floresta e com o rio. Tenho recolhido definições de pobreza e de riqueza dos ribeirinhos ao longo dos últimos anos. Em síntese. “Ser rico é não precisar de dinheiro” e “Ser pobre é não ter escolha”. E a escolha, neste caso, é bastante ampla, desde o que comer e quando trabalhar até a liberdade de se mover pelo rio, pescando ora num lugar ora noutro e podendo fazer casa onde quiserem. Esse modo de vida tem sido barrado pelas pressões econômicas sobre a floresta. E, no Xingu, se agudizou com Belo Monte, a catástrofe que literalmente barrou o rio e a liberdade de ir e vir.
O modo de vida ribeirinho é revolucionário em si, o que assusta a direita e também parte da esquerda que vê o mundo nos termos do capital-trabalho
A liberdade entranhou-se nos ribeirinhos que já nasceram na floresta, mas carregam no corpo uma memória transmitida oralmente que conta de séculos de jugo. É comum, ao se definirem como grupo identitário, afirmarem com orgulho: “Nunca ninguém mandou em mim”. Ou: “Nunca tive emprego”. Trabalham muito, mas nos seus próprios termos.
É fundamental perceber como esse modo de viver é revolucionário em si, na medida em que se contrapõe a uma visão de mundo dominante, para muitos a única. E como esse ser/estar no mundo não cabe num partido e num líder que só conseguem enxergar a vida nos termos do capital e trabalho.
Para parte da esquerda, bastaria um emprego e uma moradia num conjunto habitacional padronizado, que estaria tudo certo. Mas, para os ribeirinhos, nada disso faz sentido. E, para a direita, gente que não quer ter nem emprego nem patrão, mas tampouco se apresenta nos moldes do empreendedorismo, é perigosíssima.
Sem caber em nenhuma caixa, os ribeirinhos, assim como outros povos tradicionais, têm pagado um preço alto. Ao reivindicar um território coletivo em Brasília como reparação do irreparável, a destruição que Belo Monte causou nas suas vidas, eles provocam um movimento gigante. Eram pobres, na medida em que a maioria de seus ascendentes eram nordestinos fugidos da seca; criaram uma vida diferente na floresta depois que os patrões foram embora; e hoje se recusam a voltar a ser pobres urbanos.
Os ribeirinhos fizeram uma revolução inteira nas margens do rio e à margem do Estado
Em resumo: fizeram uma revolução inteira não contra, mas nas margens do rio e à margem do Estado. Como o Estado e os campos políticos vão lidar com isso quando não for mais possível silenciá-los?
Até mesmo como grupo identitário, os ribeirinhos encarnam um desafio, na medida em que sua identidade é justamente ser entre mundos. Muitos são indígenas mas são também outra coisa. São agricultores e não são ao mesmo tempo. São isso e também aquilo. São múltiplos. Essa identidade caleidoscópica e também mutante é extremamente original. E, como nenhuma outra, responde aos desafios de um mundo assombrado pela mudança climática.
Toda essa originalidade criativa e criadora é negada, quando não destruída, tanto pela direita quanto por parte da esquerda. Como ela coloca em evidência contradições estruturais e aponta as fissuras nos discursos e na produção de mitologia política, os polos se despolarizam para impedir que a barragem seja rompida. Mas, se Belo Monte ainda se ergue no Xingu, essa outra barragem já rompeu.
Qualquer impedimento à produção de memória sobre a vida vivida é, já no seu âmago, autoritário. Não é possível afirmar a defesa da democracia e, ao mesmo tempo, defender a suspensão temporária da memória. Não há adiamento possível para refletir sobre os 13 anos do PT no poder sem esbarrar no limite da ética, este sim intransponível. Como dizer para o ribeirinho que teve sua casa e sua ilha incendiadas ou afogadas e hoje vive com menos de dois reais por dia na periferia urbana da cidade mais violenta do país que sua história, sua dor e sua vida não importam, que não tem lugar na história, que não é hora?
Houve avanços importantes nas políticas públicas em áreas como a da saúde, da educação e da cultura, houve as cotas raciais nas universidades, houve a ampliação do Bolsa Família e o aumento real do salário mínimo, entre outras conquistas. Mas houve também uma visão de desenvolvimento medíocre e predadora, que massacrou a floresta e os povos da floresta. Houve a corrupção. E houve Belo Monte, onde todas as contradições de Lula, Dilma e do PT no poder, assim como o DNA de suas alianças, estão desenhadas. Não dá para fazer memória de uma parte e apagar a outra parte. Só é possível seguir enfrentando as contradições.
Belo Monte é, a cada dia mais, uma pedreira incontornável no caminho de quem deseja embargar a memória, como se fosse possível criar um projeto de país sem lidar com o passado e com o presente. Os ribeirinhos do Xingu e de outros rios amazônicos ameaçados por grandes obras de infraestrutura e de mineração, pela grilagem e pelo avanço da fronteira agropecuária representam hoje, junto com os movimentos de sem tetos nas grandes cidades, os povos indígenas e os quilombolas, não só a potência de agir do Brasil, mas a potência de ser Brasis, um país que só pode existir no plural. Brasis como entremundos também.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum

A volta do caso Paulo Preto apavora caciques do PSDB, por João Filho.

BRASILIA DF 25/02/2015 POLITICA Plenário do Senado Federal durante sessão deliberativa ordinária. (E/D:senador José Serra (PSDB-SP);senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP). Foto: Moreira Mariz/Agência Senado
Em um debate no segundo turno das eleições de 2010, Dilma perguntou para José Serra sobre Paulo Souza Vieira. A candidata se referia ao homem conhecido pela cúpula do tucanato paulista como Paulo Preto, um importante diretor da Dersa durante sua gestão no governo de São Paulo. O tucano se fez de sonso e se esquivou, mas foi obrigado a comentar o assunto no dia seguinte: “Não sei quem é o Paulo Preto. Nunca ouvi falar. Ele foi um factóide criado para que vocês (jornalistas) fiquem perguntando.”
A amnésia do candidato não foi perdoada e Paulo Preto mandou um recadinho que entraria para o folclore da política nacional:  “Serra me conhece muito bem. Até por uma questão de satisfação ao país, ele tem que responder. Não se larga um líder ferido na estrada a troco de nada. Não cometam este erro”. Logo após a ameaça, Serra fez um esforço mental e imediatamente lembrou desse aliado querido: “Evidente que eu sabia do trabalho do Paulo Souza, que é considerado uma pessoa muito competente e ganhou até o prêmio de Engenheiro do Ano*. A acusação contra ele é injusta. Ele é totalmente inocente”.
Esta semana, o nome de Paulo Preto voltou à tona depois de passar um bom tempo nos canfundós do noticiário. Mas não foi graças ao trabalho do Ministério Público paulista ou à Lava Jato, mas ao Ministério Público suíço que, de forma espontânea, revelou às autoridades paulistas que o engenheiro ligado aos tucanos escondia R$113 milhões em contas de uma offshore. A informação preenche a última lacuna no rastreamento dos pagamentos de propinas para agentes públicos e políticos do PSDB.
Durante o governo Alckmin, Paulo Preto foi o comandante de um grupo que coordenou investimentos rodoviários no estado. Depois, sob o governo Serra, foi promovido à diretoria de engenharia da Dersa, órgão estatal responsável pelas obras viárias. O engenheiro administrava algumas das maiores obras do país, com contratos que somavam R$ 6,5 bilhões. Esse era o peso de Paulo Preto dentro das gestões tucanas em São Paulo.  
No ano passado, delatores da Odebrecht acusaram o engenheiro de ser o operador das propinas do PSDB no escândalo do “Trensalão”. Era ele quem pedia e recebia os recursos em nome do partido e organizava os cartéis das empreiteiras tanto no metrô quanto nas obras viárias. Paulo Preto foi citado também no caso Cachoeira como sendo o homem de ligação entre PSDB e a empreiteira Delta. O dinheiro encontrado no exterior é a peça que faltava no quebra-cabeça. Paulo Preto era o tesoureiro informal do partido e, ao mesmo tempo, um diretor importante de uma estatal responsável por obras bilionárias.
Apesar do fingido lapso de memória, Serra conhecia muito bem Paulo Preto. Conhecia tanto que trouxe a família do engenheiro para dentro do Palácio dos Bandeirantes. Logo no seu primeiro mês de governo, em 2007, por meio de um decreto, contratou a filha do engenheiro para trabalhar como assistente técnica de gabinete. Ela também já havia prestado serviços para a prefeitura quando Serra era prefeito.
Ao lado de Paulo Preto, Serra conversa com trabalhadores do Rodoanel.
Ao lado de Paulo Preto, Serra conversa com trabalhadores do Rodoanel.
Robson Fonseca
Mas não parou por aí. A incestuosidade dentro do  governo se estendeu à mãe e ao genro de Paulo Preto. Os dois abriram uma empresa em 2003 que prestaria serviços para empreiteiras nas obras do Rodoanel, tocadas pelo engenheiro. Além disso, uma das filhas de Paulo Preto trabalhou como advogada das empreiteiras contratadas para construir o Rodoanel. Perceba a desenvoltura com que o polivalente operador se deslocava por todas as posições. O cara batia escanteio e corria para a área para cabecear. Mas o tucano mais próximo de Paulo Preto é o atual ministro das Relações Exteriores Aloysio Nunes, com quem tem uma relação de unha e carne. Por indicação de Aloysio, Paulo Preto trabalhou durante todo o segundo mandato de FHC como assessor especial da Presidência. Quando o engenheiro foi preso em flagrante por negociar ilegalmente um bracelete de brilhantes em uma loja do Shopping Iguatemi, Aloysio não largou o companheiro ferido na estrada e ligou pressionando a delegada do caso para não prendê-lo. Uma das filhas de Paulo Preto chegou a fazer um empréstimo de R$ 300 mil para o senador quitar seu apartamento em Higienópolis. Era esse o nível de amizade entre os dois.
As empreiteiras investigadas no âmbito da Lava Jato também fizeram parte do esquema de Paulo Preto que abastecia as campanhas eleitorais do PSDB. Depois de anos fazendo um pente fino no Rio, no Distrito Federal e no Paraná, já está mais do que na hora da Lava Jato fazê-lo no estado mais rico do país. Antes tarde do que nunca. Como bem afirmou o procurador da operação, Carlos Fernando Lima, a operação não se resume apenas à corrupção na Petrobrás.
É interessante notar também a lentidão com que o Ministério Público paulista (relembremos a simbiose com os governos tucanos) e os tribunais lidam com esse caso. Ele já é de conhecimento público há pelo menos 8 anos e as investigações pouco evoluíram. A lerdeza das autoridades nos remete ao mensalão tucano que, uma década depois de denunciado, quase metade dos acusados ainda não foi julgada e outros já se beneficiaram da prescrição.
Os jornalistas Rubens Valente e Reynaldo Turollo Jr mostraram esta semana na Folha que o inquérito desse caso  é “marcado por lacunas e procedimentos que fogem à rotina de uma apuração do gênero”. A PGR, por exemplo, ficou sabendo da existência das contas na Suíça desde agosto do ano passado, mas não informou à Polícia Federal, que só soube delas pela imprensa.
Para piorar o quadro, o relator da investigação sobre Serra, Aloysio e Paulo Preto no STF é ninguém mais, ninguém menos que Gilmar Mendes – aquele amigo que já abriu as portas do seu palacete para oferecer um jantar de aniversário para Serra. O fim dessa história não é difícil de prever.
A grande mídia também não demonstra a mesma volúpia de outros casos de corrupção. Apesar de boas reportagens sobre o caso terem sido publicadas, ainda faltam as manchetes de capa, o exército de colunistas indignados entrando em ação, uma longa reportagem no Jornal Nacional e outdoors da VEJA com a imagem dos tucanos espalhados pela cidade. Vocês conhecem bem o combo que inflama e leva milhares para a Paulista atrás de um pato inflável.
A grana encontrada no exterior pelos suíços tem altíssimo potencial destruidor para os caciques tucanos. É provável que o batom na cueca empurre o ex-operador tucano para uma delação premiada. E, segundo o próprio Paulo Preto, “tudo o que acontecia no Dersa era de conhecimento do Serra e do Aloysio”. Alckmin, o provável candidato do PSDB para as eleições desse ano, também pode ser encostado contra a parede, já que manteve Paulo Preto em cargo importante no período em que o engenheiro cometeu boa parte das suas estripulias. Passada quase uma década da denúncia, é inacreditável que Paulo Preto ainda não tenha sofrido pelo menos uma condução coercitiva. Será que operador tucano tem foro privilegiado e a gente não sabe?

*O prêmio a que José Serra se refere foi concedido pela Assembleia Legislativa de São Paulo, historicamente dominada pela bancada do PSDB. Dentro desse contexto, o prêmio foi mais do que merecido.

Uma proposta para resolver de vez o problema das armas de fogo nos EUA, por Mehdi Hasan.


Mais uma semana, mais um tiroteio, desta vez em Parkland, na Flórida. Lugar? Uma escola. Número de mortos? Dezessete.
Enquanto a história se repete, três letrinhas continuam a tornar quase impossível o controle de armas de fogo nos EUA: NRA, a Associação Nacional do Rifle. Como então podemos barrar um grupo que já foi considerado “a pior força da política” (Huffington Post) e “provavelmente a mais poderosa organização de lobby” (Washington Post) do país, cujo ex-presidente, o falecido Charlton Heston, certa vez afirmou que o governo federal só conseguiria tirar as armas de fogo dos membros da NRA se as arrancasse de suas “mãos frias e mortas”?
Bem, tenho uma inusitada proposta para solucionar o problema sem colocar nenhuma vida em risco: e se todos os muçulmanos dos EUA entrassem para a NRA? Sim, todos. Cada. Um. Deles.
Imaginem só. Há entre três e sete milhões de muçulmanos nos Estados Unidos. A NRA tem apenas cerca de cinco milhões de membros. Uma campanha de associação em massa pelos muçulmanos do país poderia efetivamente dar a eles o controle da organização.
Conservadores de todos os cantos do país ficariam estarrecidos. Em poucos dias, o presidente da Câmara, o republicano Paul Ryan, estaria reunindo seus colegas de partido no Congresso para apoiar medidas legislativas emergenciais, tais como verificação universal de antecedentes e tempos de espera mais longos para aquisição de armas. Alguns analistas de direita talvez até começassem a questionar a própria Segunda Emenda [à Constituição dos EUA]. Enquanto isso, o presidente Trump provavelmente iniciaria um ataque pelo Twitter aos “fracassados” da NRA por darem abrigo ao “islamismo radical”.
Afinal de contas, se os atiradores em Parkland ou Las Vegas fossem muçulmanos, alguém duvida que esses massacres teriam sido imediatamente enquadrados como atos de “terrorismo”? Ou que o presidente teria exigido restrições de viagem ainda mais amplas e talvez até a criação de campos de concentração? Até mesmo Tom Friedman levantou essa questão no New York Times, depois do ataque em Las Vegas: “se [o atirador] Stephen Paddock fosse muçulmano, […] se tivéssemos uma foto dele posando com o Alcorão em uma mão e um rifle semiautomático na outra […], certamente haveria comoção imediata exigindo uma comissão de inquérito para avaliar quais leis precisariam ser aprovadas para assegurar que isso não se repetisse.”
Está bem claro que a sociedade tem dois pesos e duas medidas no que se refere aos muçulmanos, então por que não usá-los para sabotar a onipotente NRA e subvertê-la por dentro?
O pessoal de direita talvez tente argumentar que a organização receberia de braços abertos os milhões de novos associados muçulmanos, porque a NRA se dedica a promover o direito de portar armas e a defender seus proprietários, independentemente de raça ou religião.
Ora, não me façam rir. É preciso lembrar de Philando Castile, o motorista negro de Minnesota que foi morto a tiros depois de ser parado por um policial em julho de 2016? Embora ele tivesse licença para porte oculto de armas, a NRA permaneceu em ostensivo silêncio sobre sua morte. (Um representante da NRA inclusive tentou culpar Castile pelo tiro que o matou.)
Houve ainda o episódio da chegada de um grupo de Panteras Negras aos degraus da Assembleia Legislativa da Califórnia, portando revólveres e espingardas, em maio de 1967. O ato levou o então governador, o republicano Ronald Reagan, a assinar a Lei Mulford, que proibiu o porte aberto de armas carregadas, com total apoio da NRA.
Se os republicanos já não gostam muito que os negros americanos tenham armas, o que será que pensariam no caso dos muçulmanos? Três em cada quatro membros da NRA são republicanos, e, segundo uma pesquisa conduzida pelo centro de pesquisas Pew Research Center, a franca maioria dos republicanos acredita que os muçulmanos que vivem nos EUA apoiam o extremismo. Quase nove entre cada dez republicanos dizem estar preocupados com o extremismo em nome do Islã nos EUA.
Falando francamente: esse pessoal já tem uma conduta de suspeição e hostilidade em relação aos vizinhos muçulmanos pacíficos e desarmados; dá para imaginar o tamanho do choque que sentiriam diante da perspectiva de viver lado a lado com muçulmanos legalmente armados. E detentores de carteirinhas da NRA e autorizações de porte oculto de arma, para piorar. O horror, o horror!
Pensem em como eles reagiriam às possíveis campanhas de divulgação: fotos de mulheres usando hijabs e portando rifles de assalto AR-15 no clube de tiro perto de casa; outdoors trazendo a mensagem de que “a única forma de parar um bandido armado é… um bom muçulmano armado”; hashtags #MuçulmanosNRA e #AllahAmaArmas viralizando.
Os conservadores ficariam malucos, divididos entre sua suposta lealdade à Segunda Emenda e o medo e o desprezo que sentem pelos muçulmanos. É por isso que uma adesão em massa dos muçulmanos iria enfraquecer simultaneamente a NRA, a Segunda Emenda e a destrutiva cultura armamentista americana. De brinde, ainda encerraria de uma vez por todas um debate preguiçoso: “Por que os muçulmanos não se integram à cultura?”. Afinal, se a pistola é uma tradição americana tão forte quanto a torta de maçã, os muçulmanos patriotas não deveriam estar armados também? Ter muitas armas?
A entrada de muçulmanos na NRA também ajudaria a tornar a associação um pouco mais moderada. Atualmente, há muito em comum entre o grupo dos fanáticos proprietários de armas e o dos extremistas islâmicos: ambos são reacionários ultraconservadores; ambos são predominantemente masculinos; ambos são apaixonados pela violência; ambos são obcecados por uma leitura literal dos livros sagrados (de que outra forma podemos descrever o relacionamento da NRA com a Segunda Emenda?). Os muçulmanos que se consideram moderados, por outro lado, têm um longo histórico de enfrentamento aos extremistas dentro de suas comunidades; eles certamente se dariam bem enfrentando também os extremistas dentro da comunidade dos proprietários de armas.
Então, se você vive nos EUA e se chama Mohammed ou Ali ou Omar, seja patriota e aja em prol do controle das armas de fogo: vá se inscrever na NRA. Aqui está o formulário.
Tradução: Deborah Leão

O Rio é como Beirute, por Leandro Demori.

Em outubro de 1964, um policial meteu o pé na porta de uma casa na periferia de Marselha e prendeu o químico Joseph Cesari, o mais famoso refinador de heroína da Europa. Havia mais de uma década que um laboratório não era descoberto na capital do crime organizado francês – as forças de ordem assistiam à escalada da violência passivamente.
A queda de Cesari não acabou com o tráfico, é claro. O mercado americano, principal comprador da heroína francesa, demandava cada vez mais, e os gângsters buscaram saída nos braços seguros dos compadres italianos: a máfia Cosa Nostra importou os refinadores do lado de lá dos Alpes e fez da Sicília o maior laboratório do mundo. A heroína gerou riqueza e violência nunca vistas. Em poucos anos, Palermo tinha pelas ruas tantos cadáveres quanto o Líbano em guerra. Uma manchete de jornal virou o símbolo daquele tempo: “Palermo é como Beirute”.
A história passada há meio século ilustra muito do que acontece hoje no Rio de Janeiro. A guerra às drogas já se mostrava, em 1964, um equívoco. Hoje, é uma insanidade. E mesmo que o desejo seja o de continuar com a repressão, a história também mostra que não existe “escalada do crime” que seja tão rápida que não possa ser investigada e controlada. Se Marselha, Palermo e Rio se parecem, é por dois motivos: dose intensa de capitalismo criminal globalizado – são cidades portuárias onde a demanda ganha escala – e convivência harmoniosa com os salões do poder político e da polícia corrupta.
Marselha ficou 10 anos sem estourar um laboratório de heroína. A violência no Rio vem aumentando desde a falência das UPPs, há anos. Não começou no carnaval. Um mês atrás, o ministro da Defesa, Raul Jungmann, disse sobre a segurança no Rio: “Não há descontrole nem desordem”. Anteontem, o mesmo Jungmann mudou de ideia: “Inadmissíveis e lamentáveis” as cenas de violência no carnaval. Ontem: intervenção militar.
Concluo, então, que a escalada da violência que justifica colocar um general na Secretaria de Segurança começou depois de 12 de janeiro. É a mais rápida de que se tem notícia na história.
Sabem quanto foi o investimento em inteligência policial no Rio em 2014? 40 mil reais (é mil mesmo, não milhões). Em 2015: 21 mil. E 2016, quando já era mais que evidente que o projeto de segurança das UPPs havia sido implodido? Zero.
A guerra às drogas faliu. Mas eles querem continuar a lutá-la só com músculos, sem usar o cérebro. Nenhuma surpresa.
Leandro Demori escreve todos os sábados exclusivamente na newsletter do The Intercept Brasil. Este texto foi publicado na mais recente edição. Clique aqui para assinar.

Hora de virar a mesa dos banqueiros, por Paulo Kliass.

on 16/02/2018Categorias: Brasil, Destaques, Economia
Itaú, Bradesco e Santander lucraram R$ 50 bilhões, em meio à crise mais profunda da História. Juros extorsivos, sonegação e cumplicidade do BC explicam fenômeno. Tudo isso pode ser revertido
Por Paulo Kliass | Imagem: Daniel Quintero, Los hermanos Quintero (1988)
O período entre as festas do final do ano e a folia do Carnaval é normalmente marcado pela divulgação de informações que deveriam deixar envergonhados todos os que se preocupam com um mínimo de decência e justiça em termos da organização de nossa sociedade. Em especial, me refiro à forma como são apropriadas e distribuídas as diferentes formas de renda e riqueza entre nossos cidadãos.
Durante os meses de janeiro e fevereiro as instituições financeiras apuram seus balanços patrimoniais e contabilizam os lucros realizados ao longo do ano anterior. Um dos aspectos que mais impressiona nessa maratona de publicação de seus resultados é a aparente naturalidade com que esses números são tratados por aqueles que são os responsáveis pelas editorias de economia dos grandes meios de comunicação e também por parte da maioria de nossos dirigentes políticos.
Nesses tempos de endeusamento da meritocracia e de loas incomensuráveis lançadas às virtudes dos empresários eficientes em suas áreas de atuação, tudo isso parece tão normal. Afinal, se ganharam mesmo tanto dinheiro assim só pode ser pelo simples fato de que são bons e competentes naquilo que fazem como operadores sua área de negócios. A realidade dos lucros bilionários dos bancos tornou-se uma espécie de tradição intocável em nossa sociedade, cada vez mais tão marcada pelo abismo verificado entre as duas centenas de milhões dos que quase nada possuem e o punhado de triliardários que adoram ostentar suas fortunas. Estes últimos parecem adorar a acirrada disputa da presença em listas de bilionários, tão cuidadosamente elaborada por revistas especializadas, como as mais conhecidas Forbes e Fortune.
Assim, em 2017, a duplinha dinâmica dos líderes do capital privado em nosso sistema financeiro mantiveram sua dianteira. Enquanto Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal foram orientados a atrasarem suas respectivas divulgações, os donos de Itaú e Bradesco exibem orgulhosos as suas façanhas. O primeiro é o banco do presidente do Banco Central e ofereceu um novo recorde, ao registrar um lucro líquido de R$ 25 bilhões. O segundo é o banco do candidato de Lula a presidente do Banco Central em 2015 e apresentou ligeira queda em seu lucro, obtendo apenas R$ 15 bi ao longo do ano passado.
Brasil: paraíso dos bancos.
A terceira posição dentre os bancos privados operando por nossas terras ultimamente tem sido ocupada pelo conglomerado financeiro espanhol Santander. Em 2017 o lucro obtido pela filial tupiniquim foi de R$ 10 bi. Esse resultado representou um salto de 36% em relação ao ano anterior. Tal performance assegurou a lucratividade do grupo em sua escala de atividade global. Os rendimentos auferidos pelo banco apenas no Brasil representaram 26% do total dos ganhos do grupo espanhol em todo o mundo. Recordemos que se trata do sétimo maior banco do planeta.
A soma dos lucros dos 3 maiores bancos privados em nosso mercado financeiro no ano passado alcançou a cifra de R$ 50 bi. Sabe-se de todo o esforço realizado pelas áreas jurídicas e de planejamento tributário das instituições para escapar do pagamento de impostos. Assim, os ganhos reais foram muito maiores do que esses aqui contabilmente revelados e declarados. Isso sem contar a generosidade absurda oferecida pela legislação criada por FHC – e mantida desde então pelos sucessivos governos de Lula, Dilma e Temer – que isenta de tributação o recebimento privado de lucros e dividendos. Uma loucura!
O Brasil está mergulhado há mais de dois anos em uma profunda recessão econômica. O PIB encolheu mais de 8% desde 2015, como consequência direta do aprofundamento da estratégia do austericídio. O desemprego chegou a atingir 14 milhões de trabalhadores e a quebradeira das empresas foi generalizada ao longo desse período. Apesar de todo esse clima de catástrofe social e econômica, o único setor que não foi sequer atingido pela crise foi justamente a banca. As instituições financeiras continuaram faturando muito alto e apresentaram seguidamente resultados ostentando lucros vergonhosamente bilionários.
O poder do financismo ultrapassa os limites da área de atuação das instituições financeiras. O mito da força do mercado – tão amedrontador aos olhos dos analistas e especialistas forjados no interior do próprio sistema – impõe ao conjunto da sociedade os sacrifícios coletivos para que sejam drenados, de forma segura e contínua, a essa ínfima parcela os recursos extraídos de todos os demais setores.
A cumplicidade do Banco Central.
As fontes desses ganhos inexplicáveis e inaceitáveis são multivariadas. A sinecura proporcionada pela permanência das nossas taxas oficiais de juros em níveis de campeã do mundo é uma delas, com toda a certeza. Os bancos têm rentabilidade muito elevada sem fazer absolutamente nada: basta emprestar ao governo com ganhos balizados pela SELIC. A prática antiga e conhecida da sonegação tributária no interior do sistema das finanças reforça o poder das empresas e retira recursos do conjunto da sociedade. As tarifas cobradas pelos chamados “serviços” bancários no interior de nossas fronteiras também figuram dentre as mais elevadas do planeta. Além desses fatores, ganha participação especial os ganhos proporcionados pelos impressionantes níveis de spread praticados pelos bancos.
A farsa da colocação de dirigentes de bancos privados no comando do Banco Central cai como sopa no mel em tal quadro incestuoso. Ao brandir pela “independência” do BC para que este opere em termos supostamente “técnicos”, os defensores dos interesses do financismo buscam legitimar a prática daquilo que a sabedoria popular chama de “colocar a raposa para tomar conta do galinheiro”. Afinal, nada mais “político” do que deixar a instituição responsável pela regulamentação e fiscalização do sistema financeiro nas mãos dos próprios banqueiros.
Ora, como encontrar outra resposta para a ausência de ação do BC no controle do crime de abuso econômico praticado há décadas pelos bancos? A prática articulada das empresas em regime de oligopólio é por demais conhecida para que se tente outra forma que não a intervenção pesada do órgão regulador na defesa dos interesses das partes mais frágeis na relação econômica determinada. Fiquemos apenas com o exemplo mais escandaloso do spread praticado nas operações realizadas com cartões de crédito.
Lucros dos bancos só crescem.
O BC acaba de divulgar seu mais recente relatório com tais informações. Em dezembro de 2017, a média da taxa cobrada pelos bancos nessas operações era 335% ao ano. Recordemos apenas que naquele momento a SELIC estava na faixa de 7% ao ano. Quem se dedicar a calcular o diferencial de ganho nessa operação chegará ao inacreditável percentual de 4.685%. É por isso que a posição de chefe de tesouraria de instituições financeiras no Brasil é tão cobiçado. Em nenhuma outra praça do mundo uma singela operação de crédito oferece tamanha rentabilidade sem praticamente nenhum risco envolvido.
Mas Paulo, poderão arguir alguns leitores, o fato é que a taxa SELIC baixou no período mais recente e isso deve ter impactado os custos das operações. Pois peguemos os valores observados nos finais de ano anteriores:
Como se pode perceber, os ganhos dos bancos nas operações só fizeram crescer no período mais recente, como vinha ocorrendo desde sempre. Esteja a SELIC em alta ou em baixa, esteja a inflação mais ou menos controlada, os interesses dos bancos não são afetados. Muito pelo contrário! A complacência e a cumplicidade do BC só contribuem para essa verdadeira sensação de impotência do conjunto da sociedade frente ao poder exacerbado do sistema financeiro.
A proximidade do pleito de outubro e a oportunidade gerada pelo debate de alternativas eleitorais não podem deixar de lado a questão da dominância do financismo. É necessário uma ampla discussão nacional a essa respeito. É urgente que superemos nossa condição de uma sociedade que permite se deixar escrava dos desejos do parasitismo rentista por tanto tempo. Um modelo social e econômico menos desigual pressupõe maior capacidade de controle e regulação do Estado perante esse perigoso poder. Por outro lado, as empresas do mundo das finanças deveriam contribuir com maior capacidade de arrecadação tributária para um Brasil mais justo e desenvolvido.

O último post, por Nuno Ramos de Almeida.

on 19/02/2018Categorias: Comportamento, Comunicação, Destaques, Internet, Sociedade
“Não eram o mesmo povo, eram nichos de mercado. Quando muito, se queria conviver, fazia um grupo na rede sobre sua série preferida. Estava provisoriamente fora, porque Game of Thrones só voltaria em 2019. Embora já soubesse, pelos inúmeros spoilers, como acabava a oitava temporada”
Por Nuno Ramos de Almeida
Tinha-se tornado invisível. Tudo tinha começado há algum tempo. Parece que o algoritmo do Facebook tinha mudado outra vez. Via cada vez menos gente no mural. Depois, os que via passaram a ser iguais a ele: tinham todos opiniões concordantes. Agora, até as suas almas gêmeas pareciam ter emigrado.
O seu dia começa invariavelmente com uma mensagem a dizer: “O seu post teve um melhor acolhimento, oferecemos-lhe 5 euros para promovê-lo.” Tentava fechar aquela incómoda janela. Era admoestado pela máquina: ‘”Tem certeza de que quer perder esta promoção?” É verdade que há muito se tinha rendido às virtudes da comunicação na rede.
Usava o Instagram para mostrar a solidão: o seu alegado treino – desfilava paisagens das serras e dos céus, quando passeava toda a sua concentração estava no que ia postar, fazia tudo como um turista japonês costuma percorrer uma cidade estrangeira, de olho no boneco e clique rápido no smartphone. Acabou de colocar a milésima imagem da sua sala e as fachadas desertas da noite da véspera.
Enquanto caminhava, passava o tempo espiando o celular, para ver se alguma coisa tinha acontecido. Começou a reparar que não fazia mais nada do que isso na vida: tirava e guardava o telefone em intervalos que começavam a acompanhar a respiração.
Espreitava outras vidas encenadas na rede, vivia por procuração. Na máximo da sociabilidade, correspondia-se com pessoas que não conhecia em ciclos que se repetiam sempre da mesma forma. As conversas que começava aprofundavam-se e desapareciam. Acalmava-o saber que a vida corria com as novas estações digitais que tinham substituído as da moda e as solares: havia uma época de foto de gatos, outra de refeições, a que se sucedia inevitavelmente uma de exibição das próprias pernas na praia.
Tudo o que começa tem um fim. Muitos morriam sozinhos, de mural aberto. A página vagueava na rede como um mausoléu eletrônico a que iam afluindo os avatares dos amigos a comentar, com os mais distraídos, quando avisados pela rede do aniversário do amigo, a parabenizar o morto.
Todos exibiam a sua intimidade. De tal maneira que essa encenação deixava pouco espaço para alguém ser qualquer coisa para além de uma casca. O que o aliviava era a profunda convicção que tinha que, de tanto representar uma coisa, havia uma altura que se fundiria com a própria ficção. Tinha na memória uma frase de George Santayana no livro de Goofman A Representação do Eu na Vida Quotidiana: “As máscaras são expressões controladas e ecos admiráveis do sentimento, ao mesmo tempo fiéis, discretas e supremas. As coisas vivas, em contacto com o ar, adquirem uma cutícula, e não se pode argumentar que as cutículas não são corações; contudo, alguns filósofos parecem chatear-se por causa das imagens por não serem objetos, e com as palavras por não serem sentimentos. Palavras e imagens são como as conchas, não são menos parte integrante da natureza do que as substâncias que cobrem (…) Não diria que a substância existe por causa da aparência, ou o rosto por causa da máscara, ou as paixões por causa da poesia e da virtude…”
Já não via os filhos. Foram, aliás, os primeiros a desaparecer da tela da sua vida. Argumentaram que tinham outras redes próprias, para evitar a vigilância dos parentes, mas principalmente os comentários e os likes dos parentes mais velhos.
A última vez que saíra tinha recusado conversar com uma pessoa, movendo-a para a esquerda, e tinha tido a súbita vontade de fazer um superlike a outra, sem perceber como o fazia sem pegar no celular e fora da app própria. Já não sabia estar na rua a não ser para alimentar conteúdos das suas contas nas redes sociais. Se pudesse, fazia isso tudo de casa. Já dizia o outro, que tinha colocado à discussão a hipótese de não sermos mais que cérebros ligados a coisas que nos estimulem: “Penso, logo existo.” E continuava a pensar, de forma que certamente existia.
Evitava conversas na rua quando ainda trabalhava fora de casa, primeiro por timidez e depois porque não tinha, na maior parte dos casos, qualquer assunto em comum com essas pessoas. Nenhuma delas pertencia aos seus “amigos”. Há muito que ele e a maioria das pessoas não viam as mesmas coisas. Já quase ninguém com menos de 80 anos via televisão “generalista”, nem sequer viam os mesmos programas no Netflix. Não eram o mesmo povo, eram nichos de mercado. A esmagadora maioria da gente via as suas coisas no computador. Quando muito, se queria conviver, fazia um grupo na rede sobre a sua série preferida. Estava provisoriamente fora disso porque o Game of Thrones só voltaria em 2019. Embora já soubesse pelos inúmeros spoilers como acabava a oitava temporada.
Por vezes, como um grito vindo do exterior longínquo de países selvagens – certamente sem internet –, uma vaga de um assunto varria a tela do seu computador: uma guerra, um escândalo, um crime mais gritante. Nesse momento, como por magia, as pessoas dividiam-se em dois grupos diametralmente opostos, como se se tratasse de uma disputa entre dois clubes de futebol. Não havia nenhum terreno comum de discussão. Nem ninguém lia qualquer argumento do outro. Aquilo que começava em tom de argumentação logo passava a ruído. Todo o mundo começava a insultar-se, como se estivesse num carro em hora de pico. Mesmo esses momentos de ira eram cada vez mais rápidos. O assunto desaparecia como tinha aparecido, para ser substituído por outro ou por gatinhos. Ultimamente, até essas pequenas recordações de raiva estavam controladas. No último jornal que tinha lido, na internet, informaram-no de que, em virtude do combate às “fake news” e ao extremismo, os serviços de busca e as redes sociais iam mudar o algoritmo, de modo que toda a notícia não nativas das redes sociais pudesse ser postada, mas fosse controlado o seu alcance e divulgação. Inicialmente, começaram pelos jornais russos que não eram de confiança; depois passaram aos grupos de ativistas e, no fim, qualquer notícia estava demais.
Neste momento concreto em que escrevia o post, não percebia se estava vivo ou morto. Estava numa espécie de limbo em que alimentava a rede para ninguém. A única coisa que lhe dava uma réstia de esperança de que continuava a existir é que sempre que postava um par de seios, numa fotografia, num quadro, ou mesmo um par de montanhas espetadas para o céu, o Facebook retirava-lhe o post e ameaçava suspender-lhe a conta.