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terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

A credibilidade do judiciário em jogo, por Leonardo Avritzer.



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A credibilidade do judiciário em jogo
por Leonardo Avritzer
O julgamento do recurso impetrado pelo ex-presidente Lula junto ao Tribunal Regional da 4ª região irá representar mais do que uma continuação das ações daqueles que pensam que o combate a corrupção pode se dar à margem do estado de direito ou daqueles que acham que qualquer ação justifica a retirada de Lula do processo eleitoral. Creio que a dimensão mais importante do julgamento será, de fato, a jurídica e ela nos ajudará a responder a indagação sobre a legitimidade das ações do poder judicial no Brasil. O direito penal é a jóia da coroa do sistema jurídico. É ali antes de tudo que se coloca a questão se o sistema de justiça é um instrumento de poder dos poderosos ou se ele é parte do sistema de direitos das sociedades contemporâneas. Membros da assim chamada força tarefa da operação Lava Jato justificam suas ações através do mote ninguém se encontra acima da lei, mas frequentemente eles parecem ter concepções bastante primitivas sobre a lei ou realizam um processo de identificação absoluta entre as suas ações e a lei, lembrando do velho adágio absolutista agora adaptado para a afirmação “eu sou ou nós somos a lei”. O objetivo deste artigo é justamente argumentar que os chamados agentes da justiça estão na obrigação de se submeterem à lei da mesma forma que os demais indivíduos ou até mais já que a credibilidade do poder judiciário depende não de condenações apressadas e precárias e sim de ações fundamentadas na lei e no código penal.
Vale a pena, para mostar a importância do ponto levantado acima, lembrar a história de alguns países que deram legitimidade ao sistema de júri e ao poder judiciário no seu processo de construção estatal. Estados Unidos e Austrália se destacam nesse quesito. No caso da Austrália, a história fundadora do país é um julgamento injusto na Inglaterra que impedia ex-condenados de terem acesso ao sistema de júri. Com um júri constituído apenas de soldados, o caso foi revertido. O sistema de júri nos Estados Unidos onde ele existe para todos os casos criminais e, na Austrália, onde ele é uma das instituições fundantes do país permite que erros processuais ou processos instruídos de forma arbitrária sejam revistos por indivíduos leigos. A Europa não tem este sistema, mas tem o sistema do juiz de instrução que opera na França, na Itália, na Espanha, em Portugal e também na nossa vizinha Argentina. O que o juiz de instrução faz? Ele separa o julgamento da instrução do processo penal.  Por que isso é importante? Porque a história do sistema judicial nos países que hoje constituem as principais democracias modernas é uma história de abusos por parte de juízes e principalmente do Ministério Público. Infelizmente, a acreditar na Revista Economist (edição de 07 de novembro de 2017) este ainda é muitas vezes o caso (https://www.economist.com/news/leaders/21731154-american-idea-spreads-in...).
O Brasil é o único país entre as grandes democracias do mundo no qual um juiz pode orientar uma delação premiada contra um réu, instruir um processo e julgá-lo. A delação premiada brasileira se insere mal em um sistema no qual o réu não pode se submeter nem ao sistema de júri e nem a um juiz diferente daquele que supervisionou a delação. Ou seja, Sérgio Moro, no caso do ex-presidente Lula, orientou a delação premiada, aceitou a denúncia, legalizou a posse de um apartamento por provas indiretas e alegou ter fórum para todas essas ações apesar de o S.T.F. só ter lhe concedido foro sobre as ações ligadas à Petrobrás e condenou o ex-presidente. Isso depois de ser censurado pelo ex-ministro Teori Zavascki acerca  de vazamentos de gravações que contrariam a lei brasileira sobre o assunto, chegando inclusive a gravar a defesa do ex-presidente. Vale a pena utilizar dados comparados para analisarmos quando um juiz é impedido de continuar presidindo um julgamento nos Estados Unidos. Ali o fato do juiz ter conhecimento prévio do caso ou ter atuado de forma ilegal é, em geral, suficiente para um juiz ser impedido de atuar no caso. No caso do julgamento do ex-presidente Lula é interessante que coube ao próprio Sérgio Moro dizer porque ele continuava sendo um juiz neutro. Diz Moro e aqui cito a sentença do caso: “no entendimento deste julgador, respeitando a parcial censura havida pelo Ministro Teori Zavascki, o problema nos diálogos interceptados não foi o levantamento do sigilo, mas sim o seu conteúdo, que revelava tentativas do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva de obstruir investigações e a sua intenção de, quando assumisse o cargo de Ministro Chefe da Casa Civil, contra elas atuar com todo o seu poder político”. Analisemos o julgamento proferido pelo ex-ministro Teori neste caso para ver se de fato o juiz interpreta a censura que recebeu de forma correta. Afirmou Teori Zavascki no ponto 7 da sua decisão: “Ainda mais grave, procedeu a juízos de valor sobre referências e condutas de ocupantes de cargos previstos nos artigos 102 I, b e c.” Ou seja, estamos diante de um juiz que tergiversa em questões processuais. Ele reafirmou sua capacidade de interpretar intenções dos ocupantes de cargos depois de um juiz do Supremo Tribunal Federal censurá-lo por isso. Fica a pergunta: se um outro juiz avaliasse esta questão, tal como ocorre na França, na Espanha, na Itália e em Portugal ele tomaria a mesma decisão? Portanto, esta é a primeira questão que precisa ser examinada pelo TRF-4. Houve ou não um juízo neutro no caso do ex-presidente Lula?
Sabemos que o julgamento de Lula conteve três discussões fundamentais, a propriedade de um apartamento tríplex no Guarujá, a relação dele com a OAS e a relação da OAS com a Petrobrás e com o próprio Lula. É interessante perceber que em nenhuma das três questões aquilo que o sistema do júri norte-americano denominou de “beyond the reasonable doubt” ficou estabelecido. Vamos ao primeiro ponto: a ideia de propriedade e os critérios para se provar propriedade. É sabido que o tríplex não está em nome de Lula e que nem ao mesmo um contrato assinado a Lava Jato conseguiu produzir. Nem uma testemunha que sabe o que aconteceu com exceção do infeliz Leo Pinheiro que teve que amargar um tempo extra na prisão porque ele poderia dar à Lava Jato o que ela queria. Moro, na sua sentença, considerou provada a propriedade na seguinte passagem, 809 a 811:
“Ainda antes das alegações finais, na petição do evento 730, a Defesa de Luiz Inácio Lula da Silva alegou que haveria prova documental de que o apartamento 164-A, triplex, no Condomínio Solaris, no Guarujá, não seria de propriedade dele pois teria sido arrolado entre os bens da OAS Empreendimentos no processo de recuperação judicial que tramita perante a 1ª Vara de Falência e Recuperações Judiciais da Justiça Estadual de São Paulo (processo 0018687- 94.2015.8.26.01000). Juntou na oportunidade documentos. 810. Ora, como já adiantado nos itens 304-309, não se está aqui a discutir a titularidade formal do imóvel ou questões de Direito Civil, mas sim crime de corrupção e lavagem de dinheiro, este último pressupondo condutas de dissimulação e ocultação.... Estando o imóvel formalmente em nome da OAS Empreendimentos era de se esperar que fosse arrolado no processo de recuperação judicial da empresa, já que esta é obrigada a indicar todos os seus bens. Isso era ainda mais esperado, considerando que a recuperação judicial foi iniciada em 2015, ou seja, após a prisão cautelar de José Adelmário Pinheiro Filho e depois das divulgações de notícias na imprensa acerca de possíveis crimes envolvendo o apartamento triplex, quando a transferência formal do imóvel ao ex-Presidente tornou-se algo arriscado. ... Então o argumento da Defesa é absolutamente insubsistente.”
Temos duas questões procedimentais para discutir aqui: a primeira é se o direito criminal pode ter regras menos precisas do que o direito civil, tal como afirma Sérgio Moro. Esta questão mais uma vez nos remete ao direito comparado. No caso dos Estados Unidos, existe uma distinção clara entre direitos civil e criminal. O direito civil opera com a ideia de “preponderance of evidence” (evidências que apontam majoritariamente em uma direção) enquanto o direito criminal opera com o princípio de “beyond the reasonable doubt”. Quando nós analisamos a sentença de Sérgio Moro baseado neste princípio percebemos o absurdo lógico que a estrutura. O que Moro afirma na sentença do tríplex é basicamente o seguinte: como o caso diz respeito ao direito criminal eu me eximo de ter que apresentar evidências relacionadas ao direito de propriedade que reside no campo civil. A afirmação de Moro poderia ainda fazer sentido se ele tivesse evidências preponderantes ou além da dúvida razoável no caso criminal. Sabemos que ele não o tem, já que a única coisa que ele apresentou foi um depoimento de uma pessoa coagida a depor depois de ser presa, o que mais uma vez está proibido em diversos países. Temos aqui o segundo problema procedimental que esperamos que o TRF-4 de Curitiba trate. É possível que o direito penal não se submeta a nenhum critério razoável de prova. Nesse caso, vale a pena observar que já houve um caso criminal relativo a propriedade no TRF-4 que envolve uma pessoa das relações pessoais de Sérgio Moro, Carlos Zucolato Jr. Neste processo de execução criminal devido a dívida fiscal, a sentença do TRF-4 é clara: “O titular do direito de propriedade é aquele em cujo nome está transcrita a propriedade imobiliária”. Esta é a jurisprudência do TRF-4 até o dia de hoje. Ou seja, no caso da propriedade do tríplex do Guarujá temos a possibilidade seguinte: que duas varas declarem a propriedade de forma diferente (já que ele está sendo executado como propriedade da OAS na 2ª vara de execução de títulos em Brasília) e que o TRF-4 declare uma jurisprudência que vale apenas para um caso, apenas para seguir uma sentença sem fundamento da primeira instância.
Por fim, temos o terceiro aspecto que é a relação entre Lula e a OAS e o chamado ato de ofício. Ainda que Sérgio Moro e o Ministério Público tivessem conseguido provar a propriedade do tríplex (e eles não conseguiram pelo menos de acordo com a jurisprudência válida no TRF-4 até hoje dia 23 de janeiro de 2018), ainda assim, eles teriam de acordo com o direito penal brasileiro mostrar o assim chamado ato de ofício. A lei brasileira é clara em relação a este ponto que foi discutido pelo STF no momento em que examinou a ação do MP contra o ex-presidente Fernando Collor de Melo. Naquela ocasião, o S.T.F. estabeleceu uma jurisprudência válida até hoje segundo a qual “para a configuração do artigo 317, do Código Penal, a atividade visada pelo suborno há de encontrar-se abrangida nas atribuições ou na competência do funcionário que a realizou ou se comprometeu a realiza-la, ou que, ao menos, se encontre numa relação funcional imediata com o desempenho do respectivo cargo, assim acontecendo sempre que a realização do ato subornado caiba no âmbito dos poderes de fato inerente ao exercício do cargo do agente.” Sérgio Moro na sua sentença contra Lula tentou romper com este princípio. Segundo Moro,
Poder-se-ia ainda cogitar, nestes autos, de ato de ofício ilegal consistente na alteração do procedimento da Petrobrás, uma vez que esta começou, por solicitação de José Adelmário Pinheiro Filho junto ao Governo Federal, a convidar a Construtora OAS para grandes obras, mas não restou demonstrado que a alteração dessa praxe, embora motivada pelas propinas, se fez com infração da lei. 890. Mesmo na perspectiva do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a indicação por ele dos Diretores da Petrobrás que se envolveram nos crimes de corrupção, como Paulo Roberto Costa e Renato de Souza Duque e a sua manutenção no cargo, mesmo ciente de seu envolvimento na arrecadação de propinas, o que é conclusão natural por ser também um dos beneficiários dos acertos de corrupção, representa a prática de atos de ofícios em infração da lei. É certo que, provavelmente, o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva não tinha conhecimento de detalhes e nem se envolvia diretamente nos acertos e arrecadação de valores, pois tinha subordinados para tanto, mas tendo sido beneficiado materialmente de parte de propina decorrentes de acerto de corrupção em contratos da Petrobrás, ainda que através de uma conta geral de propinas, não tem como negar conhecimento do esquema criminoso.”
Sérgio Moro faz duas alegações em relação à chamada presença de atos de ofícvio. Em primeiro lugar, ele questiona a jurisprudência vigente no país que ele diz não conclusiva apesar da decisão do S.T.F. nos anos 90. Em seguida, ele reconhece que não existiu por parte do ex-presidente ato de ofício. Em terceiro lugar, Moro tenta se basear na jurisprudência internacional, em especial, na Norte Americana quando afirma no parágrafo 865 da sentença que:
“Basta para a configuração que os pagamentos sejam realizados em razão do cargo ainda que em troca de atos de ofício indeterminados, a serem praticados assim que as oportunidades apareçam. Citando Direito Comparado, "é suficiente que o agente público entenda que dele ou dela era esperado que exercitasse alguma influência em favor do pagador assim que as oportunidades surgissem" ("US v. DiMasi", nº 11-2163, 1st Cir. 2013, no mesmo sentido, v.g., "US v. Abbey", 6th Cir. 2009, "US v. Terry", 6th Cir. 2013, "US v. Jefferson", 4th Cir. 2012, todos de Cortes de Apelação Federais dos Estados Unidos).”
Moro afirma corretamente que todos estes casos foram decididos por tribunais de apelação nos Estados Unidos. O que ele, por um lapso, esqueceu-se de afirmar é que a Suprema Corte invalidou todos eles,  ao estabelecer uma nova jurisprudência no recurso impetrado pelo ex-governador da Virgínia Robert F. McDonnell. Neste caso, decidido por unanimidade a Suprema Corte dos Estados Unidos, reafirma a necessidade de ato de ofício.
“Se o tribunal de primeira instância determinar que existe suficiente evidência para um juri condenar o Governador McDonnell de cometer ou concordar em cometer um ‘ato de ofício seu caso deve passar por um novo julgamento “ escrever o presidente da Suprema Corte , Roberts. “Se o tribunal determinar que a evidência [de ato de ofício]  é insuficiente a acusação tem que ser retirada.”
(https://www.washingtonpost.com/politics/supreme-court-rules-unanimously-in-favor-of-former-va-robert-f-mcdonnell-in-corruption-case/2016/06/27/38526a94-3c75-11e6-a66f-aa6c1883b6b1_story.html?utm_term=.d78ec81dbc24). Ou seja, a Suprema Corte dos Estados Unidos ordenou que os tribunais inferiores fizessem o que Sérgio Moro não fez. Mais uma vez se vê no caso brasileiro, insuficiência de linhas diretrizes e de defesa de direitos pelo S.T.F.
Chegamos, assim, ao cerne do julgamento do ex-presidente Lula pelo S.T.F. Temos três fortes suspeições pesando sobre a sentença: a primeira suspeição é sobre a neutralidade do juiz. Coube ao próprio juiz arguir sua neutralidade e interpretar a censura que ele recebeu do ex-ministro do STF Teori Zavaski. Não houve qualquer tipo de revisão das decisões de Sérgio Moro por outro juíz como ocorre na Europa e nos EUA. O segundo problema com a sentença é uma banalização do direito penal e uma negação de qualquer princípio do direito civil. O ex-presidente Lula não só não tem a propriedade, como não esteve, não morou e não usufruiu do bem. Mesmo se a condição fosse o imóvel estar sob a tutela da OAS, esta condição não se cumpre quando ele é executado pela vara de execução fiscal de Brasília. Como diz um articulista no jornal New York Times hoje “a evidência contra o Sr. da Silva está muito abaixo dos padrões que seriam levados a sério, por exemplo, no sistema judicial dos Estados Unidos.” Por fim, temos o problema do ato de ofício mais uma vez negado por Sérgio Moro e que é condição na maior parte dos sistema judiciários e recebeu uma decisão a respeito da Suprema Corte dos Estados Unidos. Enganam-se aqueles que acreditam que Sérgio Moro e a Lava Jato colocarão o Brasil em qualquer roteiro internacional. Se o colocarem será no roteiro dos países que tem um o judiciário engajado politicamente, que não tem estruturas de estado de direito suficientemente fortes e que tem um Supremo Tribunal omisso em relação ao direito de defesa. Mais do que o ex-presidente Lula quem estará em julgamento hoje é o sistema de justiça no Brasil que permitiu as fortes violações do direito penal perpetradas pelo juiz Sérgio Moro.

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