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quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

O juiz está nu: as consequências da superexposição do Judiciário, por Grazielle Albuquerque.

Sessão plenária do STF.
Sessão plenária do STF.



O Brasil “descobriu” o auxílio-moradia dos magistrados. Essa é a sensação que se tem ao acompanhar a cobertura política dos últimos dias. O estopim foi a matéria sobre o duplo auxílio-moradia recebido pelo juiz da 7a Vara Federal do Rio de Janeiro, Marcelo Bretas, e por sua esposa, que também é magistrada. Responsável pelas ações da Lava Jato no Rio, Bretas recebe o benefício desde 2015, amparado por uma decisão judicial que contraria a Resolução nº 199 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), cujo teor proíbe o benefício em duplicidade para casais que morem na mesma residência.
Na sequência, o juiz Sérgio Moro, proprietário de um imóvel em Curitiba, também apareceu em matérias e memes sobre o assunto. Moro recebe o benefício, no valor de R$ 4.377, ainda que tenha apartamento próprio em Curitiba. Em declaração à imprensa, afirmou que o benefício serve de compensação pela falta de reajustes para os juízes. A declaração de Moro leva a uma discussão sobre o teto constitucional (já que o auxílio não é considerado renda, ficando inclusive isento de imposto) e sobre como é possível, dentro da lei, criar fórmulas de burlar os próprios ditames legais. Uma questão importante surge a reboque: o que é legal é sempre justo?
O auxílio só foi estendido a todos os magistrados e membros do Ministério Público do país por conta de uma liminar do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux. Desde que foi tomada, em setembro de 2014, a decisão gerou um gasto estrondoso para os cofres públicos. Dentre as beneficiadas com a interpretação, está a própria filha do ministro, Marianna Fux, que é desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e possui dois imóveis na capital. Eis que outra questão se coloca: o Judiciário está isento de interesses ao julgar?

Superexposição

Com o assunto em pauta, não faltam exemplos de como o benefício parece ser talhado para simbolizar as discrepâncias sociais brasileiras e como o Sistema de Justiça não está apartado delas. Magistrados, promotores de Justiça e defensores públicos, com paridade de vencimentos, têm hoje uma remuneração que gira em torno de 30 mil reais. A soma, acrescida do auxílio, representa cerca de 34 vezes o valor do salário mínimo, nos casos em que outros penduricalhos não entram na conta. Essa discussão sobre direitos e privilégios dos que compõem o Sistema de Justiça parece que vai ser levada a cabo. Sobram temas para puxar o cordão, como as férias de 60 dias e os demais auxílios – de ajuda de custo para vestuário à compra de livros. Tais benefícios e seu contraste com a realidade brasileira merecem ser vistos com um foco próprio, mas ensejam outra discussão num plano médio: as consequências da superexposição do Judiciário e seu comportamento como ator político.
Até o início dos anos 2000, era comum se dizer que o Judiciário era um “ilustre desconhecido”. Nem de longe essa expressão pode ser usada hoje. O Judiciário está na agenda midiática e pública, é fato. Esse é um processo que vem sendo construído há alguns anos. Durante o julgamento do mérito e dos recursos da Ação Penal 470, o “mensalão”, em 2012 e 2013, termos técnicos antes inimagináveis à linguagem jornalística, tais como embargos infringentes, estiveram em quase todas as chamadas e manchetes de jornais. Em dezembro de 2016, foi organizada uma manifestação na Avenida Paulista em apoio à Lava Jato. Lá estavam bonecos infláveis e camisetas com fotos dos membros da operação em caricaturas de super-heróis. Na mesma manifestação, diversas pessoas carregavam cartazes com os nomes dos ministros do Supremo. As pessoas sabiam, inclusive, como tais ministros votaram em determinados assuntos. Concordavam e discordavam. Não seria uma inverdade dizer que hoje a escalação do Supremo tem “jogadores” mais conhecidos que muitos nomes da seleção brasileira – e que, como os atletas, já sofrem cobranças e hostilidades públicas por seus “dribles”.

Explosão latente

É curioso observarmos que, poucos dias antes do auxílio-moradia tomar conta dos jornais e das redes sociais, a outra pauta que reinava absoluta era a da condenação do ex-presidente Lula no Tribunal Regional Federal da 4a Região (TRF4), no processo relativo à operação Lava Jato. O julgamento-espetáculo teve torcida organizada nas ruas, contou com bloqueio aéreo, terrestre e naval ao redor do Tribunal e foi transmitido ao vivo. Lá estava uma Justiça que disputava a opinião pública em contraponto com o réu. Isso diz muito sobre o que vemos agora.
As pautas sobre o julgamento de Lula e o auxílio-moradia podem parecer díspares, mas acabam por trazer à tona a necessidade de uma análise detalhada sobre a “isenção” do processo. O trâmite legal dos procedimentos garante sua lisura? Como? Por quê? O que vale para um vale para todos? Essas são perguntas fundamentais, feitas por uma sociedade que começa a entender o comportamento do Sistema de Justiça. Se escapa à maioria expressões próprias do Judiciário, tais como “prescrição” ou “pedido de vistas”, permanece a indagação sobre os motivos em relação aos quais algum tema ou pessoa é ou não julgado e em que período de tempo isso acontece. Os questionamentos sobre os benefícios classistas podem aparecer agora num primeiro plano, mas estão imbricados numa questão latente sobre o funcionamento da Justiça – que tem tudo para explodir em breve.
O nível de exposição das instituições judiciais chegou em um ponto de saturação que impressiona. Se, de alguma forma, isso alçou juízes e promotores a celebridades, por outro lado, abriu espaço para revelar distorções e arbitrariedades que antes só eram percebidas por quem acompanhava o meio jurídico de perto. São dois eixos de um mesmo movimento e, ao que parece, algo começa a mudar.
Há um histórico que mostra como o Direito e, em especial, a magistratura são tomados por uma determinada classe social. José Murilo de Carvalho, em A construção da ordem e o teatro das sombras, fala da importância dos juízes para unificar a elite no Império. Quantos podiam mandar seus filhos para estudar Direito em Coimbra? A pergunta parece longínqua, mas hoje cabe questionar: quem tem condições de sustentar a máquina de cursinhos para se tornar um magistrado ou membro do Ministério Público? Dentre tantos fatores, o perfil de quem ocupa as carreiras jurídicas diz muito sobre como a Justiça é feita, sobre a ideia que se tem de privilégios e mesmo a quem se destina a lei.
Se as cobranças públicas espantam os que emularam uma Justiça heroica, um panorama rápido nos lembra que, até anos 2000, as pautas na mídia que giravam em torno da instituição diziam respeito à transparência e accountability. A CPI do Judiciário, em 1999, e a Reforma, em 2004, com suas discussões sobre o controle externo e a famosa “caixa-preta”, são eventos importantes a mostrar a pertinência de tais demandas.
A democratização do Sistema de Justiça foi e ainda é uma questão não resolvida. O que acontece agora é que, para o bem e para o mal, os holofotes não permitem mais uma acomodação silenciosa de interesses. Estar na agenda pública tem seu preço. Foi rápido o pulo de vilão a mocinho, mas há problemas profundos demais no Judiciário para que seja possível ficar muito tempo em cena sem que eles apareçam.
Grazielle Albuquerque é jornalista e doutoranda em Ciência Política pela Unicamp

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