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sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Tuiuti e Beija-Flor, entre o País da exploração e o da corrupção por Miguel Martins

por Miguel Martins publicado 13/02/2018 17h31, última modificação 14/02/2018 17h18
A primeira escola elegeu a escravidão como raiz de nossos problemas. A segunda contou a história do Brasil a partir dos desvios morais
Mauro PIMENTEL / AFP
Tuiuti
Tuiuti abordou a exploração do trabalho, enquanto a Beija-Flor retratou o assalto aos cofres públicos
Os desfiles das escolas Paraíso do Tuiuti e Beija-Flor de Nilópolis na Sapucaí chamaram atenção pela dimensão política dos sambas-enredo e por referências nada sutis ao atual estado do País.
Em sua apresentação na madrugada da segunda 12, a primeira retratou manifestantes de verde e amarelo em trajes de pato e manipulados por um vampiro presidente inspirado em Michel Temer. Enalteceu ainda os "guerreiros da CLT", representados nas fantasias como uma espécie de deus Shiva dos trabalhadores, munido de martelo, foice e outros instrumentos em seus quatro braços. Os integrantes da ala carregavam ainda uma enorme carteira de trabalho avariada, uma crítica à reforma trabalhista aprovada no ano passado. 
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Já a Beija-Flor "ergueu" o Congresso e o prédio-sede da Petrobras em um de seus carros alegóricos na madrugada desta terça-feira 13. Tomado pela criminalidade, o edifício da estatal transforma-se aos poucos em uma favela: a pobreza como consequência da corrupção. O saque à Petrobras é acompanhado de perto por corruptos com panos na cabeça, uma clara alusão à "farra dos guardanapos" do ex-governador Sérgio Cabral, hoje preso, e de seus ex-secretários com o empreiteiro Fernando Cavendish. 
Vigorosos no carnaval de rua, os temas políticos ganham força na Sapucaí em reflexo do ano eleitoral e de um País dividido sobre diversos temas, a começar pela narrativa mais apropriada para explicar o atual drama brasileiro. Os desfiles da Paraíso do Tuiuti e da Beija-Flor não se resumiram aos fatos atuais, mas adotaram abordagens históricas distintas da formação brasileira.
O início do desfile da Beija Flor trouxe alegorias que remontam à história do doutor Frankenstein, escrita há 200 anos, e a relação entre o criador e sua criatura. O monstro de Frankenstein, no caso, é o próprio Brasil.
Na sequência da apresentação, surgem as alas dos piratas e dos espólios, das santinhas do pau oco usadas para sonegar impostos da Coroa no ciclo da mineração, dos ratos e abutres que integram a "quadrilha da mamata" instalada no poder. O desfecho dessa parte é a ala dos roedores dos cofres públicos, que abre o caminho para a alegoria da Petrobras e dos corruptos atuais.
O ponto de partida da Tuiuti é a escravidão. Chamada "Grito de Liberdade", a comissão de frente trouxe negros escravizados que libertam-se por meio da força dos seus ancestrais. Em seguida, o desfile traz temas da história geral e brasileira do cativeiro, até relacionar a perda de direitos trabalhistas na atualidade com a herança escravista de superexploração do trabalho no Brasil.
As escolas optam por caminhos distintos, que estão por trás de um debate relevante sobre nossa história. A alegoria do País da corrupção trazida pela Beija-Flor é uma das interpretações mais antigas de nossa historiografia. Escrito nos anos 1920, "Retrato do Brasil" de Paulo Prado, buscava explicar a suposta tendência nativa ao desvio moral em razão do tipo imoral de europeu que nos colonizou.
"No Brasil, logo nos anos que se seguiram ao descobrimento, se fixaram aventureiros em feitorias esparsas pelo litoral. Eram degredados que abandonavam nas costas as primeiras frotas exploradas, ou náufragos, ou gente mais ousada desertando das naus, atraída pela fascinação das aventuras. Dessa gente, raros eram de origem superior e passado limpo", escreve Prado.
Mais à frente, intelectuais como Sergio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro também buscariam em nossa colonização razões para nossos desvios civilizatórios, embora com interpretações muito mais robustas. Rejeitado na academia atualmente, o argumento de Prado sobre a degeneração e nossa suposta essência corrupta por vezes se reproduz no senso comum, sendo tratado como verdade absoluta por grande parte da população em meio às investigações da Lava Jato. 

Se a Beija-Flor foi a porta-bandeira da tese do "País da corrupção" na Sapucaí, a Paraíso do Tuiuti alinhou-se com uma interpretação acadêmica que ganhou força nas últimas décadas: mais do que a corrupção, a preservação do sistema escravista e da superexploração do trabalho é a principal característica das elites econômicas da Colônia e do Império.
Nas últimas décadas, diversos historiadores buscaram consolidar a escravidão como tema definitivo de nossa formação social e cultural, a exemplo de Luiz Felipe de Alencastro, que aborda em "Trato dos Viventes" a construção do império ultramarino português a partir das redes comerciais no Atlântico Sul, notadamente às do tráfico negreiro. Um dos principais críticos atuais da tese do "País da corrupção", o sociólogo Jessé Souza costuma afirmar que a escravidão é o principal pilar da nossa formação histórica, e não os desvios éticos, comuns a todos os povos.
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Embora partam de pontos de vista distintos, as abordagens históricas das duas escolas também se entrecruzam. As alas destinadas a retratar a corrupção no início do desfile da Beija-Flor dão lugar a alegorias e fantasias contra a intolerância e o preconceito.
Temas como a xenofobia, a discriminação, o feminícidio e a apresentação do carnaval como espaço da redenção democrática ganham espaço. O abandono dos filhos "da pátria que os pariu", tema do desfile da escola de Nilópolis, não é apenas fruto da corrupção, mas também das violências simbólicas contra as minorias. 

Por outro lado, a corrupção não está ausente do desfile da Tuiuti. Pelo contrário: enquanto a comissão de frente aborda a escravidão, o último carro alegórico a passar pela Sapucaí não traz apenas um vampiro presidente. Rodeado de notas de dinheiro, o sangue-suga está a serviço do enriquecimento ilícito.
O combate à corrupção surge no desfile da Tuiuti não como ponto central de nossa formação histórica como povo, mas como um discurso muitas vezes utilizado por integrantes da elite, também corruptos, para manipular a opinião pública contra seus algozes. 
A discussão sobre o Brasil estar assentado principalmente na corrupção exposta pela Beija-Flor ou na exploração denunciada pela Paraíso do Tuiuti não se encerra em um simpósio de historiadores ou em um desfile de carnaval. O fato de duas escolas terem transformado esse debate em festa e música mostra, porém, que os problemas do País não são mais adiados para a quarta-feira de cinzas.  

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