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quarta-feira, 15 de junho de 2016

A crise brasileira é a espuma superficial de um problema estrutural ignorado pela esquerda, por Luiz Marques.

luiz marques
Entrevista especial com Luiz Marques.
A esquerda erra ao separar a agenda ambiental da agenda social, como se fosse possível manter o combate à desigualdade sem levar em consideração as consequências suicidarias de uma política desenvolvimentista que concebe o planeta erroneamente como estoque infinito de recursos. Esta é a avaliação do historiador Luiz Marques que avalia neste entrevista a atual conjuntura política e econômica do Brasil da perspectiva ambiental. “A crise brasileira é a espuma superficial de um problema estrutural e profundo, para o qual os contingentes majoritários da esquerda não estão dando a devida atenção,” afirma o autor de Capitalismo e colapso ambiental (Ed Unicamp, 2015), “conservar o que resta da biosfera tornou-se essencial para manter qualquer sociedade organizada”.
Esta conversa, conduzida por Gabriel Zacarias (pós-doutorando USP/EHESS-Paris) e Fernanda Marinho (pós-doutoranda Unifesp/Musée du Louvre), dá sequência à série de entrevistas do Movimento Democrático 18 de Março (MD18) com grandes intelectuais de esquerda publicadas no Blog da Boitempo. Leia a primeira entrevista da série, com o sociólogo franco-brasileiro Michael Löwy, clicando aqui, e a segunda entrevista da série, com o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, clicando aqui.
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O senhor foi militante político e atuou na resistência à ditadura militar no Brasil. Partindo dessa experiência, como o senhor considera a atual situação política brasileira? É possível estabelecer, de fato, um paralelo entre o Brasil pós-64 e o momento atual?
Paralelos são sempre possíveis e tentadores, mas não subestimemos o que foi o golpe de 1964. Ele instalou uma ditadura militar que se tornou, sobretudo após 1968, terrivelmente violenta. Fechou o Congresso Nacional, criou órgãos específicos de repressão dirigidos pelas Forças Armadas e articulados com outras ditaduras latino-americanas e com os Estados Unidos. Tão ou ainda mais grave que tudo isso, mas menos lembrado, a ditadura é também culpada pelo mais fulminante “ecocídio” jamais perpetrado pelo gênero humano. Segundo o INPA, até meados do século XX a ocupação humana da Amazônia não ocasionara alterações significativas em sua cobertura vegetal. Foram os militares que desencadearam a dinâmica de sua destruição. Em 1992, sete anos após o fim da ditadura, a área desmatada por corte raso da Amazônia correspondia, segundo dados do IBGE, a 499.037 km2. Em apenas 25 anos (1967-1992), a ditadura e os governos civis que ela gerou – os de José Sarney (1985-1990) e de Fernando Collor de Mello (1990-1992) –, haviam destruído na Amazônia uma área de floresta quase equivalente ao território da França.
Diante desse quadro, o paralelo proposto com o golpe parlamentar em curso é até compreensível, mas a escala dos dois fenômenos é incomparável. O que presenciamos é uma sórdida manobra parlamentar, no intuito, até agora não bem-sucedido, de circunscrever a ofensiva do Judiciário contra o PT e de salvar a própria pele. A precária coalizão que hoje dirige o país aproveita-se de uma crise econômica profunda e da desmoralização do PT para tentar anular as pequenas, mas significativas, conquistas sociais obtidas durante o primeiro decênio do século. Encontrará dificuldades, talvez intransponíveis se considerarmos sua imoralidade, impopularidade e os conflitos entre os grupos rivais dentro da própria coalizão. A dupla Temer-Blairo Maggi tentará a proeza de ser ainda pior que a dupla Dilma-Kátia Abreu em termos de devastação ambiental. Isso posto, não há como equiparar sua destrutividade, por hedionda que seja, à do ecocídio perpetrado pela ditadura, pelo simples fato de que Temer não pode passar por cima da sociedade, da crítica internacional, da comunidade científica e das instituições em geral, vigilantes em relação à conservação do que ainda resta da Amazônia.
Para alguns comentadores, a atual crise brasileira seria resultante de uma luta de classes que encontra sua expressão em duas formas distintas de políticas públicas: políticas neoliberais, de Estado mínimo, por um lado, e políticas sociais, por outro lado, ainda inspiradas pelo modelo do Welfare State. O senhor concorda com essa visão? A crise ambiental provocada pelo capitalismo, da qual o senhor trata em seu livro Capitalismo e colapso ambiental, não apontaria justamente para um limite da política de Bem-Estar Social?
Para responder à primeira pergunta, digo que a visão de que a atual crise brasileira reflete um conflito social, uma luta de classes, é indiscutível. Os que detêm a propriedade e o controle sobre o capital querem, como sempre, aumentar sua rentabilidade. Os que não detêm capital lutam para pelo menos manter sua participação na distribuição da riqueza nacional, participação em parte assegurada pelo Welfare State. Isso é uma constante social, mesmo quando não há crise. Quando a crise se instala, o conflito tende naturalmente a se acirrar. Mas aqui beiramos o truísmo: como imaginar uma crise socioeconômica e política alheia à luta de classes?
Quanto à segunda, não acredito que a crise ambiental apontaria para um limite da política do Bem-Estar Social. Ao contrário. O Welfare State é fundamental para a diminuição do impacto ambiental. Satisfazer as carências básicas de 90% da humanidade aumentaria de modo irrelevante o impacto humano sobre os ecossistemas ou mesmo o diminuiria. Por exemplo, em 2015, havia 2,7 bilhões de pessoas sem acesso à infraestrutura sanitária básica. Provê-las dessa infraestrutura, missão primeira do Welfare State, implicaria radical diminuição, e não aumento, de seu impacto ambiental.
No mesmo livro, o senhor apresenta como crenças falaciosas duas posições comumente defendidas também por setores progressistas: a de que seria possível um capitalismo ambientalmente sustentável, e a crença segundo a qual “quanto mais excedente material e energético formos capazes de produzir, mais segura (e feliz) será a nossa existência”. Seria, portanto, necessário romper com a própria lógica do crescimento econômico, como apontam aqui na França grupos como o do “decrescimento” e o da “crítica do valor”? Ou ainda, mais além, romper com o próprio estado tecnológico atual, como afirmam, por exemplo, os “anti-industriais”?
A crença de que o crescimento econômico como um fim em si ainda é um bem é errônea. Como afirma Herman Daly, “o termo ‘desenvolvimento sustentável’ […] faz sentido para a economia, mas apenas se for compreendido como desenvolvimento sem crescimento”. A ideia de um decrescimento administrado remonta às teses de Nicholas Georgescu-Roegen sobre as relações inevitáveis entre economia e entropia. Ela se afigura, hoje, como a proposta mais consequente, talvez a única efetiva, para uma sociedade viável. Ela se assenta sobre dois pressupostos, sem a compreensão adequada dos quais ela pareceria absurda. O primeiro pressuposto é que o decrescimento econômico, bem longe de ser uma opção, é uma tendência inexorável. Já estamos crescendo, em escala internacional, a taxas muito inferiores às dos anos 1945-1973 e iremos decrescer dramaticamente num futuro muito próximo, porque estamos esgotando os recursos minerais, hídricos e biológicos do planeta, e porque estamos desestabilizando as coordenadas ambientais que prevaleceram no Holoceno. Um crescimento anêmico ou mesmo negativo já é a nova normalidade do capitalismo. Os poucos países que ainda apresentam taxas elevadas de crescimento são vítimas de estrangulamentos ambientais que imporão em breve também estrangulamentos econômicos. Conscientes de que a ilusão desenvolvimentista está conduzindo à falência os serviços prestados pela biosfera aos seus integrantes, os partidários do decrescimento percebem que um decrescimento administrado seria a única forma de evitar um colapso ambiental, o qual será tanto mais brutal e mortífero quanto mais for protelado.
Segundo pressuposto: o decrescimento administrado é essencialmente anticapitalista. A ideia de decrescimento nos marcos do capitalismo foi justamente definida por John Bellamy Foster como um teorema de impossibilidade. Um mal-entendido tenaz deve definitivamente ser dissipado: o decrescimento administrado não é uma proposta de redução quantitativa do PIB. Ele advoga uma redefinição qualitativa dos objetivos do sistema econômico, que devem passar a ser a adequação das sociedades humanas aos limites da biosfera e dos recursos naturais. Essa adequação implica, como é óbvio, investimentos em áreas e países carentes de infraestrutura básica e, em geral, crescimento econômico imprescindível à transição para energias e transportes de menor impacto ambiental. Mas se trata de investimentos localizados, vetorizados e orientados para a diminuição de impactos ambientais (infraestrutura sanitária, abandono do uso de lenha, transporte público, etc); jamais de um crescimento pelo crescimento. Serge Latouche explicita o liame entre decrescimento e superação do capitalismo: “O movimento do decrescimento é revolucionário e anticapitalista (e até antiutilitarista), e seu programa, fundamentalmente político”.
Sobre a segunda parte da pergunta, o decrescimento não é tecnofóbico. É preciso evitar o mal-entendido que consiste em atribuir a crise ambiental à técnica como se esta fosse uma instância originária. A técnica é a objetivação de uma faculdade inerente a todas as espécies e em uma escala muito maior à nossa. Parece impossível, de resto, separar cirurgicamente seu lado benfazejo de seu lado ominoso. Mais que nunca, de qualquer modo, seu progresso é, hoje, imprescindível pois a inadiável transição para uma sociedade de baixo impacto ambiental requererá aceleração da inovação tecnológica. Pôr o engenho humano a serviço da diminuição da pressão antrópica sobre a biosfera – ao invés de mantê-lo cegamente atrelado a uma anacrônica e disfuncional pulsão acumulativa –, tal é a questão inescapável, definidora de uma nova agenda e de um novo espectro político-ideológico, inconcebíveis enquanto persistir a ilusão de que podemos crescer de modo ilimitado.
Nesse contexto, como situar a crise política brasileira? Encontramo-nos diante da deposição ilegítima de um governo de esquerda, mas cujo projeto não representava, porém, uma ruptura com essa lógica de acumulação capitalista. Tendo em vistas os limites ecológicos do capitalismo, como podemos nos posicionar perante o projeto desenvolvimentista da esquerda brasileira? O risco ambiental de projetos como o da exploração do pré-sal ainda podem valer à pena se seus ganhos forem reconvertidos em políticas públicas de combate à desigualdade? Ou se trataria de apenas mais uma ilusão?
A crise brasileira é a espuma superficial de um problema estrutural e profundo, para o qual os contingentes majoritários da esquerda não estão dando, a meu ver, a devida atenção. A defesa do monopólio do pré-sal pela Petrobrás é um ótimo exemplo do extravio da esquerda. Como se o petróleo da Petrobrás emitisse menos gases de efeito estufa… A esquerda deveria estar lutando, é sua obrigação, pelo fim de todo e qualquer petróleo! O consenso da direita de que o crescimento econômico contínuo é uma condição de possibilidade de uma sociedade segura e próspera tem sido subscrito também pela maioria das agremiações de esquerda, ou que assim se denominam. Os partidos socialdemocratas, socialistas e ex-comunistas na Europa e na Ásia, assim como o PT no Brasil, não apenas integram esse consenso, mas reivindicam maior competência que os governos supostamente situados à sua direita para garantir taxas mais robustas de crescimento econômico. São mais ou menos competentes, que importa? O traço mais distintivo do capitalismo no século XXI é a tendência ao colapso ambiental. Diante dessa tendência definidora de nosso século, conservar o que resta da biosfera tornou-se a condição primeira de possibilidade, não apenas de avanços sociais (os quais serão cada vez mais improváveis e efêmeros, a se manter o paradigma desenvolvimentista), mas da simples manutenção de qualquer sociedade organizada.
Não percebendo a radical novidade da situação histórica atual, e muito menos sua gravidade, as esquerdas em sua maioria, o PT entre elas, ainda dissociam a agenda social da agenda ecológica, reservando a esta última um espaço secundário em seu ideário e em seus programas, isso quando não a desqualificam como um estratagema de dominação imperialista, como na tristemente famosa carta de Aldo Rebelo a Marcio Santili, de 15 de julho de 2010, intitulada “A trapaça ambiental”, carta na qual afirma: “O chamado movimento ambientalista internacional nada mais é, em sua essência geopolítica, que uma cabeça de ponte do imperialismo”. Tal posição negacionista do PCdoB define à perfeição a política ambiental do governo de Dilma Rousseff e é, aliás, quase idêntica à do Partido Republicano dos EUA.
Atardadas na concepção de um planeta estoque-de-recursos (e ainda mais grave: estoque infinito), essas esquerdas distinguem-se da direita apenas por reivindicar mais investimentos nas áreas sociais e uma melhor distribuição de renda e dos serviços. No mais, subscrevem a premissa que legitima como universal o ponto de vista do capital, a saber, a da bondade e mesmo da necessidade de acumulação contínua de excedente e de energia. Escapa-lhes que a única crítica que vai à raiz do sistema capitalista é a crítica dessa premissa e do tipo suicidário de sociedade que ela implica. A protelação de um “aggiornamento” [atualização], melhor seria dizer de um “svecchiamento” [desenvelhecimento], de parte da maioria da esquerda é a maior responsável pela incipiência atual das alternativas políticas às crises socioambientais que se alastram e se agravam.
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Movimento Democrático 18 de Março (MD18) nasceu da luta contra o golpe de Estado no Brasil. Sediado em Paris, e com grande presença de pesquisadores, professores universitários, artistas e militantes de movimentos sociais, o movimento propõe ampliar a reflexão sobre as possibilidades da esquerda na atual conjuntura de crise. É com esse objetivo que o MD18 inaugura uma série de entrevistas com intelectuais, artistas e militantes de diferentes horizontes, que visam ampliar o debate sobre as formas de resistência que podem e devem advir. O projeto se inicia com a participação de grandes pensadores da esquerda como Michael Löwy, Boaventura de Sousa Santos, Nancy Fraser e Anselm Jappe, além de contar com a colaboração de inúmeros intelectuais brasileiros. As entrevistas serão disponibilizadas em português e em francês no site do MD18.
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Luiz Marques é professor do Departamento de História (IFCH) da Unicamp. Publicou diversos livros e ensaios sobre a Tradição Clássica e, mais recentemente, também sobre a crescente degradação antropogênica dos ecossistemas, entre os quais, “Brazil. The legacy of slavery and environmental suicide” (History of Nations, Londres, Thames & Hudson, 2012); e Capitalismo e colapso ambiental (Ed Unicamp, 2015). Atualmente participa, com um coletivo de professores da Unicamp, da criação do portal Rio+40, dedicado à informação, pesquisa, debate e mobilização acadêmica em torno das crises socioambientais contemporâneas.

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