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quarta-feira, 8 de março de 2017

Aleksandra Kollontai: O dia da mulher, por Luis Felipe Miguel.



A Boitempo acaba de publicar uma antologia de feministas soviéticas: A revolução das mulheres: emancipação feminina na Rússia soviética, organizado por Graziela Schneider, com textos inéditos de mais de 10 autoras revolucionárias, todos traduzidos direto do original em russo. Em homenagem ao 8 de março, Dia Internacional da Mulher, o Blog da Boitempo publica um dos artigos do volume, assinado por Aleksandra Kollontai, que discute justamente o sentido do “dia da mulher”. Traduzido por Cecília Rosas, o texto foi publicado originalmente no periódico soviético Pravda (n. 40, v. 244), no dia 17 de fevereiro de 1913. Boa leitura, e boas lutas!
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Por Aleksandra Kollontai.

O que é o “dia da mulher”? Ele é necessário? Não seria uma concessão às mulheres da classe burguesa, às feministas, às sufragistas? Isso não prejudica a unidade do movimento trabalhador?
Essas questões ainda são ouvidas na Rússia, mas não mais no exterior. A própria vida deu a elas uma resposta clara e eloquente.
O “dia da mulher” é um elo da longa e sólida corrente do movimento de mulheres trabalhadoras. Ele está crescendo, o exército organizado das trabalhadoras aumenta a cada ano. Há vinte anos, as trabalhadoras se uniam em pequenos grupos nos sindicatos e eram apenas manchas claras e solitárias nas fileiras dos partidos dos trabalhadores… Agora, na Inglaterra, há mais de 292 mil trabalhadoras nos sindicatos; na Alemanha, há aproximadamente 200 mil no movimento sindical e 150 mil no partido trabalhista; na Áustria, 47 mil nos sindicatos e quase 20 mil no partido. Na Itália, Hungria, Dinamarca, Suécia, Noruega e Suíça, as mulheres da classe trabalhadora estão se organizando por toda parte. O exército de mulheres socialistas chega a quase 1 milhão. Isso é que é força! E os poderes do mundo devem contar com elas quando se trata do aumento do custo de vida, da segurança da maternidade, do trabalho infantil, das leis que protegem a mão de obra feminina.
Houve uma época em que os trabalhadores acreditavam que tinham de carregar sozinhos em seus ombros o peso da luta contra o capital, que tinham de vencer o “velho mundo” eles mesmos, sem a participação feminina. Mas à medida que a mulher da classe trabalhadora se juntava às fileiras dos vendedores da força de trabalho, pressionada pela necessidade, pelo desemprego do marido ou do pai, aprofundava-se a consciência trabalhadora de que deixar a mulher para trás, nas fileiras dos “inconscientes”, significa prejudicar sua causa, estagná-la. Quanto mais consciente for o lutador, mas certa será a vitória. E qual é a consciência da mulher que fica no fogão, que não tem direitos na sociedade, no governo, na família? Ela não tem seu próprio “pensamento”! Faz tudo como manda o pai ou marido…
Não, o atraso e a falta de direitos da mulher são desfavoráveis, o embrutecimento e a indiferença em relação a ela são diretamente prejudiciais à classe trabalhadora. Mas como atrair a trabalhadora para o movimento, como despertá-la?
A social-democracia estrangeira não encontrou o caminho correto de forma imediata.  As portas das organizações trabalhistas estavam amplamente abertas para as trabalhadoras, mas elas raramente entravam. Por quê?
Porque a classe trabalhadora não entendeu de imediato que a mulher trabalhadora é o membro mais destituído de direitos, o mais desafortunado da classe. Que por séculos ela foi intimidada, acuada, perseguida; que para despertar seu pensamento, para que seu coração bata mais alto e mais alegre é preciso encontrar palavras particulares, compreensíveis para ela enquanto mulher. Os trabalhadores não perceberam imediatamente que, nesse mundo de exploração e de falta de direitos, a mulher é oprimida não só como vendedora da força de trabalho, mas também como mãe e mulher… Mas quando o partido socialista trabalhador entendeu isso, entrou com ousadia em sua dupla defesa: das mulheres como trabalhadoras contratadas e das mulheres como mães.
Em todos os países, os socialistas começaram a exigir a proteção do trabalho feminino, a garantia e a segurança da maternidade e da infância, direitos políticos para as mulheres, a defesa dos interesses delas.
E quanto mais nitidamente o partido trabalhista entendia essa segunda tarefa em relação às trabalhadoras, com mais vontade as mulheres ingressavam nas fileiras do partido, mais claro ficava para elas que ele é seu defensor verdadeiro, que a classe trabalhadora também luta por elas, pelas dolorosas necessidades puramente femininas. As próprias trabalhadoras, organizadas e conscientes, dedicaram-se muito à elucidação dessa tarefa. Agora, o trabalho principal para a chamada de novas integrantes trabalhadoras para o movimento socialista repousa sobre as mulheres. Os partidos de todos os países têm seus comitês, secretarias, bureaus especiais para elas. Tais comitês femininos, de um lado, conduzem as ações entre a massa de mulheres pouco engajadas da classe trabalhadora, despertam a consciência das trabalhadoras, trazem-nas para a organização. De outro lado, examinam as questões e exigências que dizem respeito às mulheres em primeiro lugar: segurança e garantia de direitos da parturiente, regulação legislativa do trabalho da mulher, luta contra a prostituição e a mortalidade infantil, exigência de direitos políticos para as mulheres, melhoria das condições de habitação, luta contra o aumento do custo de vida etc.
Dessa forma, como membros do Partido, as trabalhadoras lutam por questões comuns às classes, mas também traçam e apresentam reivindicações e exigências que, antes de tudo, lhes dizem respeito enquanto mulheres, donas de casa e mães. E o Partido apoia essas demandas e luta por elas… Pois as reivindicações das trabalhadoras são causas de todos os trabalhadores!
No dia da mulher, as trabalhadoras organizadas protestam contra sua falta de direitos.
Mas, dirão alguns, por que há essa separação das trabalhadoras? Por que há um “dia da mulher”, panfletos especiais para as trabalhadoras, reuniões, assembleias de mulheres da classe trabalhadora? Não é uma concessão às feministas e sufragistas?
Só pode pensar assim quem desconhece a diferença radical entre o movimento das socialistas e o das sufragistas burguesas.
A que aspiram as feministas? Aos mesmos privilégios, ao mesmo poder, ao mesmo direito que agora possuem seus maridos, pais e irmãos na sociedade capitalista.
A que aspiram as trabalhadoras? À destruição de todos os privilégios de nascimento ou de riqueza. Para as trabalhadoras, tanto faz quem tem o poder de ser “patrão”: se é homem, se é mulher. Junto com toda sua classe, elas podem tornar mais leve sua situação de trabalhadoras.
As feministas exigem igualdade de direitos sempre e em todos os lugares. As trabalhadoras respondem: exigimos direitos para todos os cidadãos e cidadãs, mas não permitimos esquecer que não somos apenas trabalhadoras e cidadãs, somos mães! E como mães, como mulheres – portadoras do futuro –, reivindicamos um cuidado particular conosco e com nossos filhos, uma defesa específica do governo e da sociedade.
As feministas lutam por direitos políticos. Mas aqui também os caminhos se separam.
Para as mulheres burguesas, os direitos políticos são apenas uma forma possivelmente mais cômoda e sólida de encontrar um lugar em um mundo construído sobre a exploração dos trabalhadores. Para as mulheres trabalhadoras, é um degrau da escada difícil e pedregosa que leva ao desejado reino do trabalho.
O caminho das trabalhadoras e o das sufragistas burguesas já se separaram há muito tempo. Os objetivos que a vida propõe são muito diferentes para umas e outras; os interesses das trabalhadoras e os das patroas, os das empregadas e os das “senhoras” são muito contraditórios… Não há nem pode haver ponto de contato, conciliação, união… Por isso, nem um dia da mulher, nem assembleias especiais de trabalhadoras, nem um jornal exclusivo para elas devem assustar os trabalhadores.
O trabalho destinado às mulheres da classe trabalhadora é apenas uma forma de despertá-las, de incorporá-las às fileiras de quem luta por um futuro melhor… O dia da mulher e todo o esforço meticuloso e lento para promover a autoconsciência de classe nas trabalhadoras não provocam uma cisão, mas uma união da classe operária.
Deixem que, com o sentimento de alegria de servir a uma questão comum às classes e de lutar junto com elas por sua libertação feminina, as trabalhadoras participem do dia da mulher.
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Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente. Autor, entre outros, de Democracia e representação: territórias em disputa (Editora Unesp, 2014), e, junto com Flávia Biroli, de Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014). É um dos autores do livro de intervenção Por que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil. Ambos colaboram com o Blog da Boitempo mensalmente às sextas.

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